domingo, 13 de setembro de 2020

CEM ANOS do FIORELLO STONA E ALGUMAS LEMBRANÇAS

CEM ANOS do FIORELLO STONA E ALGUMAS LEMBRANÇAS

                No Dia dos Pais, em Dois Mil e Onze, resolvi ter uma conversa imaginaria com nosso pai. Meu, da Maria Helena, do João Dilmar, da Rosane, da Vera e da Claudia. Naquele ano, tínhamos menos experiência que temos hoje. O mundo era outro bem diferente. Minha conversa inventada para ter com ele foi bem coloquial, e se caso, hoje, fossemos fazer uma comparação entre os anos 20, quando ele nasceu, falaríamos sobre guerra, ditaduras, crises. Mas afinal sobre qual década 20 estamos falando se uma se parece com a outra? Paro e volto a misturar trechos de quando ele faria 90 anos e hoje, quando estaria fazendo 100 anos. Cem anos é sempre um aniversário mágico e marcante, idade que todas as pessoas pensam um dia alcançar e não foi diferente com ele, que também sempre dizia que chegaria comemorar seu centenário. Não conseguiu.

 

            Naquele ano dois mil, muitos dos amigos dele ainda perguntavam pelo Fiorello, hoje, eles também não existem mais. Naquela época eu tinha sessenta anos, hoje temos todos dez anos a mais e nos levantamos com uma vontade imensa em dar um abraço nele e dizer que o churrasco seria feito por nós. Hoje todos estaríamos presentes, até mesmo aqueles que ele não conheceu. Cantaríamos os parabéns e ele apagaria as cem velinhas que a Hilda colocaria sobre o bolo mais bonito já feito por ela. Hoje São Sepé estaria em Festa na casa dos Stonas.

 

            Filhos iriam para a terra que ele escolheu para morrer. Netos por ordem de idade, Alexandre, Hygor, Priscila, Deborah, Fernando, Juliana, Fabrício, Filipe, Laura e Bruno fariam o coro e apresentariam uma coreografia especial, onde cada um diria onde estão e o que estão fazendo. O cordão da apresentação seria puxado pelo mais novo da família, o bisneto Gregório.

 

 

            Quando ele faria 90 anos eu disse que ele era de uma época que fumar era bonito, um símbolo do galã, do homem bonito. Hoje os dias são outros. Fumar é feio, mas tem outras coisas que os dias de hoje consideram bonitas, mas que com certeza ele não se adaptaria a ela. Isto foi um paciente do meu amigo Dr. Quintanilha que disse pela insistência na recomendação para que o paciente parasse de fumar. Fiorello fumou a vida toda, como disse no início, era um outro conceito de vida.      

 

            Lembro que naquela época falei que os cientistas diziam que já tinha nascido a pessoa que viveria os 150 anos. Pois é, tudo está se confirmando, todos os dias lemos nos jornais, famílias comemorando o aniversário daqueles que ultrapassaram a faixa dos 100 anos, mesmo estando o mundo passando por uma pandemia onde já alcançou a marca de 921.000 mortes ao total no mundo, no Brasil, mais de 132.000 brasileiros mortos. Esta pandemia foi a responsável pelo cancelamento do III Encontro dos Stonas que teria sido no Mato Grosso, onde mora a irmã Santa Filipetto, hoje com 86 anos, casada com o Romeu Filipetto. Não tem problema, faremos no ano que vem e lembraremos a todos.

 

            Lembrar do Fiorello, hoje quando estaria fazendo 100 anos é lembrar de muitas


 

            Minha infância em particular, foi de um guri de calças curtas feitas por ele com todo o carinho. É lembrar da adolescência vivida em Jaguari, onde tive a primeira queda de bicicleta de duas rodas que ganhei. Queda que serviu para que eu aprendesse que durante a vida teria tantas outras quedas bem maiores, mas que sabiamente ele ensinava a suportar, e delas levantar.

 

            Fiorello nunca desistiu em ensinar o bem para os filhos. Insistiu com a prática do amor ao próximo, com energia, através de exemplos. Nosso pai, nos presenteou com a virtude do equilíbrio, com a construção da Paz. Foi o esteio moral da família, um homem sempre temente e respeitador ao Deus que ele acreditou a vida toda. Cultivou bons costumes, os quais todos procuramos seguir com honradez, e passamos aos nossos filhos, como um ensinamento cultivado pela família.

 

            Hoje o cemitério ficou mais bonito. Todo florido e decorado com aptidão, uma


forma de homenagear o centenário do homem que escolheu a terra do Índio Sepé Tiaraju para se instalar e trabalhar no ramo do comércio do vestuário masculino, deixando as pessoas mais bonitas como dizia ele.

 

Parabéns Fiorello Stona, tua esposa, filhos, genros e noras, netos e bisnetos.


São Sepé 13 de setembro 2020.


Um grande abraço,

aquele que gostaríamos ter dado logo pela manhã.



sábado, 8 de agosto de 2020

Fiorello, um dia desse

 Fiorello, um dia desses

 

 

Seu Euzébio saiu de casa às nove horas da noite de uma sexta-feira, ninguém ficou sabendo para aonde ele foi. Ninguém tinha notícias de qual foi seu último lupanar e se mesmo assim aconteceu. Ninguém viu, na pequena cidade no centro do Estado, o homem que ao caminhar puxava de uma perna e que carregava em sua frente uma candeia.

 

A segunda-feira amanheceu marrenta, sem chuva, mas o beco estava escuro e frio, ainda com o solo molhado pelo sereno. Um ar envelhecido, difícil de respirar como que endurecido em sua quietude.

 

Passos pausados e lentos ressoavam como se fossem na noite que estava terminando, assim como terminou o óleo da candeia do Seu Euzébio. Na ladeira da viela Fernando Ferrari, uma das ruas principais no povoado que reunia, bailantas, botecos e o prostíbulo conhecido por Casa da Dona Eny, que tinha pista de dança, luz negra, mulheres sem nome próprio e tudo o mais, lá os homens do lugarejo buscavam a prática sexual pecaminosa no prazer barato, em troca de um trago de pinga e de algumas baganas qualquer. Seu Euzébio gostava do ambiente.

 

O homem com barba por fazer, ainda malcheiroso pela mistura de suor e álcool ingerido, que, pelas características descritas pela desolada Maria Aparecida, só podia ser o Seu Euzébio. Ele tinha perdido a gola do casaco e, se retirou involuntariamente do lugar em que estava, que com certeza não era na igreja que ficava em frente à praça. (Todas as igrejas no interior do Estado ficam na praça. Todas têm uma torre que se assemelha a um dedo que aponta para cima, como uma representação simbólica do dedo do Deus dos católicos


No povoado, Fiorello, um alfaiate sem diploma para colocar pendurado na parede, que hoje seria chamado de atêlier, na época alfaiataria. Apreendeu a arte da costura no Exército Brasileiro, quase que no final da Segunda Guerra Mundial. Arte de como cortar um molde e fazer um paletó, na máquina de costura que ficava no centro da alfaiataria.
O jovem alfaiate costurava naquele dia nublado, quando começou sentir no ar um cheiro azedo que se propagava conduzido pelo vento, com marcas invisíveis nas entranhas da narina amarelada pela nicotina do cigarro palheiro. O cheiro vinha da rua e entrava pela porta entreaberta junto com o homem que puxava de uma perna e  pedia socorro, para não perder o casamento com a morena cor de cuia, que ao caminhar deixa todos os outros homens loucos pelo balançar gostoso dos quadris, com jeito maroto de quem sabe o que tem e o que agrada a um homem, como foi publicado artigo da revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Morena que ao passar, deixava todos com água na boca, pelo cheiro de pecado que exalava, pelo maldoso jeito de sacodir as cadeiras, como que se flutuasse ao sabor das ondas do mar que ela nunca viu. Fiorello não  conhecia Maria Aparecida, e com certeza, bom deixa isso para lá. Ele era muito temente a Deus, e, segundo a missa que ele tinha participado no último domingo, o sacerdote disse que não se deve desejar a mulher do próximo. Bem que este entrante nem era tão próximo, mas ele não queria pecar nem por pensamento, já que era casado recentemente e não podia trair a jovem esposa.

 

Fiorello, um homem elegante. O Alfaiate (com letras maiuscula) era madrugador. Levantava cedo, fazia o chimarrão, vestia o terno e colocava a gravata com um nó ao estilo francês que aprendeu a fazer com um cantor de teatro, que, por sua vez, dizia ser o nó preferido dos frequentadores do “Moulin Rouge”. Manhã atípica. Entra em cena Seu Euzébio esbaforido, suplicando uma solução para a gola do casaco que ele perdeu e não podia chegar em casa naquele estado deprimente. A morada do Seu Euzébio era a única, e ficava perto da olaria na Vila do Barro Vermelho. Lá que ele morava com Maria Aparecida. 


Os olhares se cruzam. Um com ar de repreensão só por imaginar o que ele teria aprontado na noite anterior:
o outro, com ar de Madalena arrependida sem saber o que dizer, mas, precisando enormemente do trabalho do artista do corte e da costura que há pouco teria chegado à pequena cidade com nome de santo. Santo que era hebraico e que construiu a igreja que o filho do Senhor o recomendou, com pedras sobre pedras e, por isso mesmo, ter recebido as chaves da casa de seu pai. Fiorello sabia que não podia rejeitar serviço, Seu Euzébio poderia vir a ser um futuro freguês. Sentou-se. Costurou a gola do casaco do esmolambado e foi, como sempre fazia, polir a tesoura e fazer brasa para o ferro de passar. Outro indivíduo viria para usar os serviços do novo estabelecimento. Assim foi, outro, outro e outro.

Escrever é uma tentativa de compreender a vida. Para Arthur Schopenhauer seria o fruto, não da quantidade de leitura, mas da capacidade de perceber as coisas com a clareza da alma e, ao mesmo, tempo dialogar com os outros por prazer. É o gozo pela felicidade, mas escrever sobre lembranças e histórias que personagens do passado montam seu pensar é lembrar da alfaiataria do seu Fiorello, parado atrás do alto balcão com a fita métrica no pescoço. É lembrar da máquina de costura com pedal, que para ele era quase que como um automóvel, coisa que ele nunca teve.


Quando Fiorello estava sorvendo o chimarrão e alguém perguntava a ele pelo Seu Euzébio, responderia: Seu Euzébio nunca existiu, nem ele e nem Maria Aparecida. Seu Euzébio é um sonho, é algo do nosso inconsciente, assim como um desejo oculto castrado e vetado pela moral em nossas faculdades mentais. 

Fiorelo Stona
Fiorelo Stona aos 75 anos em São Sepé-RS
Créditos da foto: Vera Lúcia Stona


Dirceo Stona
Porto Alegre, 09 de agosto  de 2020
Dia dos Pais


domingo, 19 de julho de 2020

JORGE LUIS BORGES – Do Minotauro ao gato Beppo


JORGE LUIS BORGES – Do Minotauro ao gato Beppo


Minha história com Jorge Luís Borges começa em 1987, no mesmo ano que Moacyr Scliar publicou na Zero Hora que não sabia bem se “Instantes” era um poema ou uma autoajuda.

O impresso que ele encontrou afixado nas vitrines de Rosário, cidade portuária na Argentina, também encontrei nos andares do Hospital de Clínicas, consultórios e clínicas de Porto Alegre. “Instantes”.  Este era o título do folhetim que teria como autor o escritor argentino Jorge Luís Borges. Poesia com a mesma linha de Epitáfio”, cantada pelos Titãs em 2002.

Em uma aula de Filosofia na antiga Faculdade IDC - Instituto de Desenvolvimento

Cultural, na Rua Vicente da Fontiura com o Prof. Richer de Souza, no Grupo de Estudos sobre Borges, fiquei sabendo que o texto não tinha sido escrito por Borges.  Era A fragilidade da falsificação, como chamou Moacyr Scliar, em um especial para a Folha de São Paulo, em dezembro de 1995.

Instantes” foi escrito pela norte-americana Nadine Stair, segundo contou Maria Kodoma, viúva do escritor argentino, em um desabafo a Scliar, Borges nunca escreveria “Se eu pudesse viver novamente minha vida...” Seria uma infâmia supor tamanha desilusão de Borges com sua vida. O sucesso do texto se deu talvez, porque o leitor quer que sua vida, seja como termina a poesia: “se tivesse outra vida pela frente. Mas já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo”, e como também, os Titãs dizem na letra: “Queria ter aceitado a vida como ela é, enquanto eu andar distraído”. Hoje lendo o que Borges escreveu, também eu sei que ele nunca escreveria aquilo.

            

“FUNES, O MEMORIOSO”

Depois de “Instantes” meu contato com as escritas de Borges foi através da prosa “Funes, o Memorioso”.  Era um uruguaio, como disse Pedro Leandro Ipuche, precursor dos super-homens; “Um Zaratustra cimarrón e vernáculo”, não o discurso, mas por ser natural de Fray Bentos, capital do departamento de Rio Negro, na fronteira com a Argentina, onde Borges escreve floreios, para dar vida ao texto, seria o lugar onde deveria veranear com seu pai, mas o que não tem como ter ocorrido, já que Ireno Funes nasceu em 1868 e Borges em 24 de agosto de 1899, logo, 31 anos antes que o conto foi escrito.

Borges gostava de jogar com datas e números. Falava em Funes como se o tivesse encontrado em 1884 (15 anos antes dele nascer).  No estilo proseado, descreve recordações, dizendo não ter o direito de pronunciar tal palavra porque, segundo ele, se tratava de um verbo sagrado. Apenas um homem na face da terra teria direito de usar este substantivo que remete a lembranças, e ele, aquele que poderia usar, já estava morto e se chamava de Ireno Funes, conhecido por não se dar com ninguém em Fray Bentos, no Uruguai.

Entre as idas e vindas do narrador a Fray Bentos, Ireno aprendeu sem muito esforço o Inglês, o Francês, o Português e o Latim, mas não era capaz de pensar.  Disse que antes de cair do “azulengo” (cavalo no qual costumava montar), era como todos os cristãos, um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado.  Funes, durante 19 anos, viveu como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo e, ao cair, perdeu o que conhecia.  Quando recobrou a memória, tudo então era lembrado e as percepções eram infalíveis, sabia as formas das nuvens de 30 de abril de 1882, as dobras de um livro e as linhas de espuma que o remo levantou no Rio Negro.  Considerava sua memória um depósito de lixo.

Borges descreve que Funes, em 1886, elaborou um sistema numérico que ultrapassava 24.000 unidades.  Seu descontentamento com a descoberta foi que 33 uruguaios precisavam de dois signos e três palavras ao invés de uma só palavra e um só signo.

Ele aplicou a forma descoberta a outros números.  Em vez de dizer 7013, dizia Máximo Péres; no lugar de 7014, dizia A Ferrovia e assim por diante.  Outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre.  Cada palavra tinha um signo.

Borges, incorporado na figura de Funes, segue jogando com números e signos. Invoca o pai do Liberalismo, John Locke, no século XVII que disse que: "a mente humana era como uma tábua rasa, uma folha em branco em um idioma impossível, onde cada coisa tem um nome próprio". Para Locke, que a memória é essencial e necessária, agindo como um ponto de partida. Borges tendo sido um bom leitor, deve ter sofrido a influência desta afirmação.

Para Funes, era muito difícil dormir e durante uma ocasião disse a Borges, que dormir seria como distrair-se do mundo e pensar servia para esquecer diferenças, e que, em seu mundo havia só detalhes.


A BIBLIOTECADE BABEL


Depois de "Funes, o Memorioso", no Grupo de Estudos de Borges, me deparo com “A Biblioteca de Babel”.  Outro texto onde Borges joga com os números e força nossa imaginação é em “Funes, o Memorioso”, em que abordou a memória de um homem.  Neste outro, ele explora a memória preservada em livros.  Diz que a biblioteca é como um universo composto de um número indefinido de galerias hexagonais, com 20 prateleiras em 5 grandes longas estantes de cada lado, em uma altura de dois andares, com dois minúsculos sanitários e no vestíbulo há um espelho. Este espelho duplica as aparências, algo que o leva a deduzir que a biblioteca não é infinita, pois se o fosse, não haveria a necessidade do espelho.

Em “A Biblioteca de Babel”, cada muro hexágono correspondia a 5 estantes, cada uma delas com 32 livros, cada livro com 410 páginas, cada página com 40 linhas e umas 80 letras.  A biblioteca existe e o número de símbolos ortográficos é de 25, que enumeram o desconhecido, que depois de 300 anos fundamentam uma biblioteca que permitiu a um bibliotecário também descobrir a lei que fundamenta a Biblioteca.  Diz Borges em seu texto que todos os livros, por diversos que sejam, contam com elementos iguais, mas não há dois livros idênticos e que, em suas prateleiras, registra todas as possíveis combinações dos 20 e tantos símbolos ortográficos. Também diz que a escrita metódica o distrai da condição humana, suspeitando que a espécie humana está prestes a se extinguir, mas a Biblioteca continuará com todas suas características. e lá encontra-se qualquer livro que seja pensado.

No meio da pandemia. No século XXI, a palavra de ordem é reinventar. Surgem aulas e cursos por videoconferência. Na terceira edição do projeto Avatar, criado pelos Professores Rafael Werner e Keylla Jung,  o tema foi “Minotauro, vida e morte - A casa de Astérion”, de Jorge Luiz Borges.


 MINOTAURO, VIDA E MORTE – A CASA DE ASTÉRION

O conto apresenta uma situação que nos traz ao momento que estamos vivendo hoje quando diz: “É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que suas portas cujo número é infinito estão abertas dia e noite aos homens e aos animais...

Borges repete o jogo de palavras e brinca com os números, como nos outros textos. Deixa claro que não se interessa pelo que o homem possa transmitir a outro homem, e que pensa como o filósofo, que nada é comunicável pela arte escrita e que nunca guardou a diferença entre uma letra e outra.  Percebemos que isto não confere quando ele escreve “A Biblioteca de Babel”.  Na personagem de Astérion, repete as galerias hexagonais, a posição dos labirintos ao mostrar a casa dos sonhos para o outro Astérion, quando diz: “Agora voltamos à encruzilhada anterior” ou “Agora desembarcamos em outro pátio” ou, segue ele: “Agora verás uma cisterna que se encheu de areia e verás como o porão se bifurca”.

Assim, Borges conclui:

        “Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após o outro, caem, sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me magoa, porque sei que vive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meus ouvidos alcançassem todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu”.

 

BORGES EM SUA CASA. UMA ENTREVISTA DE MARIO VARGAS LLOSA.

 

Em 1981, Borges concede uma entrevista a Mario Vargas Llosa, publicada no jornal El Pais, no dia 14 de junho de 2020, publicou no caderno Literatura.  Conversa inédita que agora vai fazer parte do livro “Medio siglo com Borges”.  A entrevista aconteceu no apartamento que Borges tinha no centro de Buenos Aires, onde morava acompanhado de sua empregada que lhe servia de guia - Borges perdeu a visão há anos.  Lá também tinha um gato que foi batizado de Beppo, nome que ele copiou do gato de Lord Byron, poeta inglês de quem muito gostava.

Da entrevista, a qual disponibilizo o link para leitura na íntegra, pincei tiradas fenomenais de Borges, como:

Tenho muito cuidado com minha biblioteca. Quem sou eu para me comparar com Schopenhauer.”


Quando Mário Vargas Llosa lhe pergunta:

            “- Por que na sua biblioteca não estou vendo os livros que foram escritos sobre você”?

Borges responde que leu em Mendoza o primeiro livro que foi publicado sobre sua vida e foi durante a ditadura, cujo o nome ele não quer nem lembrar, reforça que sempre é bom evitar algumas palavras.  O nome do livro é “Borges Enigma y Clave”, escrito por um boliviano. Diz que leu o livro para ver se encontrava a solução, já que o enigma, ele conhecia.

Depois, ao se referir ao livro de Alicia Jurado, do ano de 1964 - escritora argentina, membro da Academia Argentina de Letras, chamado “Genio y figura de Jorge Luís Borges”, disse a ela que se tratava de um bom livro, mas que o assunto não lhe interessava, ou talvez lhe interessasse muito, logo, não iria ler. Em 1976, Alicia escreveu um livro com Borges - “Que es el budismo”.

Perguntado se estava contente com seu destino, Borges disse que não, que não estava contente, mas que sabia que se lhe fosse dado outro destino, ele seria uma outra pessoa, e então cita Spinoza, “cada coisa requer a solidão de seu ser” e quando foi lembrado por Llosa sobre uma frase que diz “Muitas coisas li e poucas vivi”, demonstrou uma certa tristeza.  Borges frisa que quando escreveu isso, ele tinha trinta anos e que naquela época não se dava conta de que ler era também uma forma de viver.

Ainda na entrevista publicada por El Pais, Llosa e Borges falam em autores como Joseph Conrad e o contista e romancista Henry James.  Em Quando Yeats, Philip Dick e Borges usaram um tarô para escrever seus livros, e quais os livros Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan compravam em Paris.  Sobre Bertrand Russell, o filósofo que disse sim ao amor livre e não à guerra, Borges responde que ele tinha razão ao se opor à guerra, e que talvez seja preciso mais coragem para se opor à guerra do que para defendê-la e até mesmo participar dela.

A entrevista ocorreu em Buenos Aires, em junho de 1981.

                                                          




N.A: - Prolonguei bastante a escrita deste post. Falar sobre Borges me empolga. Diferente da biblioteca de “A Biblioteca de Babel”, onde a capacidade de armazenamento era interminável, também diferente da memória sem fim de Ireno Funes, em “Funes, o Memorioso”, o meu computador não possui HD suficiente para armazenar todas as coisas ditas e escritas por Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, que hoje, faz parte junto com Gardel e Alfonsina do Café Tortoni, dessa forma recomendo a leitura. Não ter memória, esquecer facilmente das coisas passadas, incomoda a muitos leitores, mas pensemos:

Problema mesmo seria nunca esquecer nada, como no caso de Ireno, não esquecer nada das coisas que se passaram em nossa vida”. - Já imaginou?

Dirceo Stona

Porto Alegre - Brasil


sábado, 16 de maio de 2020

A morte do cachorro no contexto da vida

A morte do cachorro no contexto da vida

O cão como pessoa


 Meu propósito não é repetir uma história já contada. Dos dias e noites que a compõem, só́ me interessa uma noite; do resto não contarei, senão o indispensável para que essa noite seja entendida 

  
D’Jango morreu. Morreu uma pessoa em mim.

            Para muitos pensadores, pessoa é um ser vivo que  sente dor e tem sentimentos. Para Kant, pessoa é, não ‘só um  sujeito de direitos, mas também quem possui valor absoluto e  existe como fim. Já para John Locke pessoa é, um ser  inteligente e pensante dotado de razão e de reflexão.

D'Jango era tudo isso.
 
            Antes de prosseguir, alguns dos fatos que poderiam ser finais neste post, devo registrar agora. Devo registrar também, que acredito na evolução da espécie e no aperfeiçoamento das raças pela seleção genética, principalmente dos animais domésticos. Acredito que a linguagem, hoje, faz parte na diferenciação entre os humanos e os outros seres existentes no mundo, para não sairmos deste universo, onde existe algo em comum com a linguagem. Foi a falta da linguagem que fez o D’Jango sofrer, ele ainda não tinha aprendido a usar a palavra para se comunicar e dizer onde que estava doendo.

            Tenho dito, e não vou errar não, que os cachorros daqui a 300 anos vão falar. Foi a falta da linguagem falada, do jogo fisionômico do tom de voz que levou D’Jango a se comunicar com atos e ações, para dizer que estava mal. Ele estava muito mal.

            Em um sábado, dia 02 de maio, perto da meia noite, em plena vigência do Isolamento Social estabelecido pelo Governo do Estado do RGS, pelo risco de contaminação com o novo coronavírus Covid-19, que o D’Jango - nosso personagem - ao ver nossa movimentação no Cantegril/Viamão, interpretou como se fossemos sair e irmos para Porto Alegre, como sempre fazíamos nessa hora, e por entender que isso ocorreria, deitou-se no chão frio da garagem, onde todos o enxergavam, fazendo-se de morto, como quem dissesse: 

- “Por favor não me deixem aqui, eu estou mal


            Talvez seja oportuno dizer que em 30 de setembro de 2018, no post “Sobre a questão da morte”, eu disse que conseguia lidar bem com ela, que conseguia lidar com a morte sem problema, que a tenho simplesmente como um fenômeno natural, pois, dizia eu, que a considero como um evento onde todos os seres vivos participarão. Verdade, mas tenho que hoje fazer uma correção. A morte do D’Jango me fez repensar este conceito. A morte do D’Jango me afetou e eu parei para pensar o porquê de ela ter me afetado ao ocorrer neste ser que nos sábados e domingos esperava meu churrasco, que vinha na minha janela abanar o rabo como que dizendo Bom Dia e que  estava sempre feliz. Descobri. 

         A morte daquele cachorro preto com manchas cor de mel e grande  companheiro, que corria pelo pátio e brincava alegremente com a Melina, uma linda cadela viuva de dois cães  me afetou. Me afetou porque ele não tinha evoluído o suficiente e, mesmo sabendo se comunicar, não tinha aprendido a usar a linguagem das palavras no modelo lógico de dizer coisas, mesmo que elas não tivessem sentido. Falando nisso, Wittgenstein afirmou que:
 “representar na linguagem algo que contradiga as leis lógicas é tão pouco possível quanto representar uma figura que contradiga as leis do espaço”.  

         Porém, esta delimitação aparente e sufocante, estabelecida pelos limites da linguagem entre ele e eu, foi o que me fez sofrer, por não entender a intensidade da dor que ele vinha sentindo e com isso, procurar na ciência uma forma de ajudá-lo.

         O ser humano que navega no mesmo plano, que usa a mesma linguagem falada, inclusive se valendo do uso, do jogo das mímicas e do tom da voz, sabe como sinalizar onde está doendo algo em seu corpo, sabe demonstrar com clareza seu sofrimento, o animal não. O animal não sabe.

         O animal não sabe, ainda, usar um tipo de comunicação ou o humano não sabe ler na comunicação animal o sofrimento pela dor, e é esta dificuldade de não entender o sinal que eles emitem que produz o sentimento de culpa em nós seres humanos. O sentimento de culpa, surge em nós por não entendermos os sinais dados pelo animal, que aliás é o mesmo sinal dado um potencial ser humano suicida, que sempre dá antes de provocar sua própria morte e lamentavelmente não sabemos interpretar.

           O final da nossa história só poderia terminar com esta narrativa em metáforas, por ela se passar em tempos diferentes, onde a conversa tampouco existiu, nem com um nem com outro. Não quero que me tome por herege, nem me odeie por sustentar a ideia contrária dos que conversam com Deus e nem por pensar diferente dos que seguem os ensinamentos das religiões e suas divindades. São minhas reflexões.

            O D’Jango morreu como morreu o “Gumma”, o “Bolinha”, o “Nicollau”, o Buss e a “Athina”. O D’Jango morreu em 9 de maio de 2020 às 20h40 minutos.


domingo, 26 de janeiro de 2020

O cocô, no Prédio 1155

Bateu o pavor no Prédio 1155. Todos se olham ao entrarem nos elevadores.      
Por traz das cortinas dos quartos e das salas, a gente nota que têm olhos cumpridos mirando a grande piscina. 
Algo de estranho está acontecendo no Prédio 1155. Que será? O que serão aqueles elementos desconhecidos na piscina do Prédio 1155?  
- Que nojo. 
Dizem alguns.
Outros querem saber quem é o relaxado e se ele é um dos quinhentos e tantos moradores ou, quem sabe, seja alguma “alma penada” de outro mundo, que no cair da noite e no apagar das luzes está deixando sutilmente, na piscina do Prédio 1155, grandes e nojentos cagalhões. 
         O grupo de WhatsApp formado pelos moradores está agitado. Uns querem porque querem pegar o autor do ato. Outros querem de imediato instalar câmaras para filmar a área de banho de sol em volta da piscina e descobrir quem é o autor das grandes cagadas, literalmente, na piscina do Prédio 1155. 
         As reuniões continuam acontecendo. Alguns querem mandar os dejetos do bolo fecal que foram encontrados, para o Instituto Médico Legal com a finalidade de ser analisado e saber se é defecada de seres humanos ou de animais. 
         Outros se perguntam: 
         - Como que estas coisas estão aparecendo, como se nada fosse?
         - Quem é o elemento e qual a mensagem que ele está querendo passar? 
         Isto é o que todos querem saber.
       Uma Assembleia dos Condôminos será convocada em regime extraordinário para saber se algum morador cometeu bullyng a outro. 
         Será que houve algum empregado demitido? – alguns se perguntam – e este demitido está mandando uma mensagem cocozada ao seu antigo patrão? Sim, isso pode estar acontecendo, pois na Cervejaria Backer de Belo Horizonte, que hoje mobiliza centenas de polícias nas investigações, estendeu-se aos funcionários demitidos anteriormente pela fábrica. Por que no Prédio 1155 seria diferente?
         Existem vários tipos de cagadas, mas segundo consta na literatura, para se obter uma boa produção de bosta, é recomendado uma alimentação à base de feijão e ou batata doce.
         Comenta-se nos corredores que tem gente analisando os dejetos encontrados na piscina do Prédio 1155. Foi concluído sim, que o elemento cagão tem se alimentado mesmo é de feijão e de milho verde, identificado nas análises. Existe até um “buquemeque” para apostarem e adivinharem qual será a próxima composição.
Hoje não se encontra mais grandes cagadas nas ruas, disse um dos mais politizados moradores, levando o assunto para o lado da política para assim justificar que os grandes cagões estão em extinção e  cagalhões que antes ficavam expostos nas ruas, hoje desaparecem sempre que é dada descarga no banheiro, em compensação, diz ele: 
- Estão sendo produzidos em grande escala na área política, ou seja, toda a vez que algum político resolve fazer alguma coisa, é certo que nascerá mais uma cagada. Complementou o morador que é funcionário público e está com seu salário atrasado.
A psicóloga que mora no oitavo andar está se propondo em levar o caso para ser discutido na faculdade, já que não encontrou em nenhum dos livros de Freud. No momento ela está lendo o Volume 7 da coleção das Obras Completas (1905) “O Chiste e Sua Relação Com o Inconsciente”. Livro preferido de seu professor Rafael. 
Segundo a moradora, Freud nada fala deste estranho comportamento demonstrado pelo cagão, pensa ela que é mais daqueles extintos, o extinto anal onde o paciente ao lembrar da infância reprimida onde era obrigado pela mãe  a reter involuntariamente suas cagadas, hoje faz e deixa exposta as merdas em lugares públicos para que sua mãe, que não mais existe, saiba que ele foi humilhado, retrocedendo em seu inconsciente ao período  da infância.
O morador do apartamento 404 que tem a janela da sala bem enfrente a grande piscina, um dos mais exaltados da assembleia, levanta-se com sua voz de tenor assim como a de Vicente Celestino, pergunta:
-  Por um acaso nenhum dos presentes tem em casa uma Câmera Gopro para deixar filmando dia e noite até que se fraga o elemento que vem fazendo esse tipo de sujeira?
Complementa ele:
- Não importa se é ou não por problemas com a mãe ou com o pai, mas não seria ele que ia pagar por este “bosta” não ter levado umas boas surras quando pirralho. 
Continua com sua fala eloquente:
- Que tivesse se cagado quando pequeno, não agora na nossa piscina. 
A vizinha, que também presenciou os dejetos fétidos, aliás justamente a que fotografou para colocar no grupo de WhatsApp, fez uma proposta: 
- Vamos colocar câmaras em mais locais. Nas piscinas. Nos Salões de festa.  No quiosque e por onde este nojento, sem a mínima compostura possa novamente vir deixar suas cagadas para nos agredir. 
A proposta foi aprovada por unanimidade, já que na assembleia estavam presentes só moradores que frequentam a piscina e ficam de rodinha, tricotando a vida dos outros.
         Aos poucos, mesmo os mais desatentos, os mais conservadores, mesmo os novos ricos, deslumbrados com sua escalada social, vão perceber que o luxo agora é outro. O novo luxo é ter saúde. Liberdade. Tempo. Ter espaço nesse planeta atulhado, ter animais livres, e outras coisas mais.
         Além dos moradores do Prédio 1155, que querem monitorar a piscina para descobrir quem é o cagão que os afronta, também o Ministério da Justiça quer agora monitorar o esgoto dos brasileiros para radiografar o consumo de drogas no País. Essa é a proposta do projeto Cloacina, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, de Sérgio Moro. Um acordo está sendo fechado com a Universidade de Brasília (UnB) para a pesquisa, no valor de R$ 10 milhões. O projeto começará nas cinco cidades do programa Em Frente, Brasil: Ananindeua (PA), Cariacica (ES), Goiânia (GO), Paulista (PE) e São José dos Pinhais (PR).
         Vamos ver como termina essa novela no Prédio 1155. Como serão os próximos capítulos e que não termine como terminam os livros de Jô Soares, pois todos conhecemos o “Big Brother Brasil” que por seu conteúdo, quer por sua polemica ou por seu conteúdo, é um programa que mexe com muitos brasileiros e faz escola, todos querem dar uma espiadinha na vida dos outros e saber do que está acontecendo a sua volta, no Prédio 1155 não é diferente, todos querem saber quem é o cagão.