quarta-feira, 3 de novembro de 2021

 

O Direito de Sonhar



        A Festa da noite. Festa que amanhece na fria madrugada de uma linda segunda-feira, na cidade que não sabe onde fica, dos amigos que foram puras imagens soltas no mundo que fez parte de um passado sem presente. Tudo é surpresa, até mesmo uma mulher que esqueceu, na vertigem de amores mal resolvidos, o calor da cama sem o abraço e sem quem esteve o tempo todo deitado ao seu lado, sem lhe dar carinho, com a pegada firme do macho que faz a fêmea tremer. Essa festa acabou.


        De repente, ela, que usou uma minissaia na balada toda, perguntava-se por se perguntar, fazendo de conta para si mesma que não sabia, onde esteve naquela madrugada fria e quem seria ela? Em que espaço imaginário seus sonhos a levaram aviver, segundo seu cheiro de menina/mulher misturado ao de narcóticos e fantasmas?


        Jogou fora a bolsa Louis Vuitton, presente de uma ex-namorada socialite. O acessório lhe perturbou o tempo todo e já não havia mais nada o que guardar nela. Tudo que tinha, perdeu entre amigos e amigas que a fizeram sonhar, em cada ponto da encruzilhada que não soube qual dos caminhos seguir. A participação frenética da DJ toda estilosa, com um decotão generoso, fone de ouvido cheio de brilho, bem ao estilo Rihanna de ser, terminou. Todos na pista pediam bis. Aprenderam as coreografias da dança. Queriam mais. A plateia mostrava, em pares, como mexer o corpo. Desciam até o chão e subiam devagarinho, era o que a DJ gritava: “Girem uma vez, depois mais uma...”. Era isso que a moça da madrugada lembrava. Esse universo que a rodeou e se revelou permeável a todos os tipos de meditações, criaram ideias fantasiosas, devaneios regulares em uníssono com a solidão. Ela é um mundo imenso no cenário de todo o passado.


        Sempre uma cama diferente. Como se fosse uma prostituta, vagabundos, bandidos, homens que deram o seu amor sem nada esperar, receberam em troca apenas o sexo prometido. Ela, com os cabelos vermelhos e lindos cílios, abrilhantados com lantejoulas, sumiu sem ter dito para onde iria. Perdeu um sapato. Sapato que fazia calo em seu delicado pé. Por que manter um sapato que faz calo? Atirou a bolsa na rua para ver se outra puta a encontraria e a usaria. Na avenida, estudantes, trabalhadores, carolas e demais curiosos queriam saber de quem seriam aqueles apetrechos de festa perdidos na calçada. Seria de uma virgem ou donzela? Claro que não. Um sapato e uma bolsa? Não, não podia ser de um travesti... O tamanho do pé não era o de uma Drag queen.


        A menina que ama a lua, que nunca ninguém ficou sabendo quem era, sumiu.


        Outra casa. Outro lar ou outra casa? Não sei, mas nessas caminhadas há uma contradição. Assim como se encontram sapato e bolsa jogados fora, também se encontram flores. Um baú. Um gato sobre almofadas. Antinomias que formam o rico palco de sonhos, onde nem mesmo as flores permanecem como apareceram no primeiro momento. Ora são orquídeas. Ora simples rosas amarelas. Vidas são vidas. Amores, sei lá. Quem teria deixado a orquídea, a rosa? Também as flores, metamorfoseadas em mulheres, merecem carinho. Querem regar-se com amor, germinar sob o calor da mão que aperta as nádegas nuas sobre a cama. Rosas, orquídeas, flor de Liz, de manacá da serra. Toda flor, como todo corpo, pede a tepidez de outro corpo. Eis o direito de sonhar, como diria Gaston Bachelard. Todos carregam fantasias que, no inconsciente, transformam-se em alegorias oníricas.

sexta-feira, 12 de março de 2021

ENCONTRO COM BORGES

Dia vinte e quatro de agosto de 2020, na Avenida Princesa Isabel, chovia muito. Era noite de futebol. Times, com torcidas fanáticas, disputavam o primeiro jogo decisivo do Campeonato Regional do Rio Grande do Sul, paralisado há mais de oito meses, devido à pandemia que abateu o mundo e a vida de aproximadamente 800.000 seres humanos


As ruas da cidade estavam vazias, mas não era em razão da chuva fria. As ações governamentais agiam como se estivesse dado o toque de recolher devido à preocupação com o alastramento de um vírus que iniciou em Wuhan, cidade chinesa com 11 milhões de habitantes, chamado de COVID-19. Pessoas, enfurnadas nos lares, seguiam as recomendações difundidas para manter o distanciamento controlado. Só faltavam as teletelas (1984, de George Orwell). Tudo isso remetia às distopias literárias, no entanto, tratava-se de uma realidade vigiada e repleta de restrições.  

Estou cansado. Na minha cabeça, um desfile de escritores. Eles disputam o lugar pelo direito da inspiração na escrita que farei e que terá exegese. Penso. Interpretação de que obra, se ainda o ou os protagonistas não chegaram? Esqueço-me de tudo. O relógio da parede marca 23h. O jogo já terminou. Não sei quem ganhou. Não vai ser esse o assunto da crônica ou do conto. Pouco importa se ele será uma narrativa curta, para ser classificado como conto, ou se usarei fatos do dia a dia para elaborar uma crônica. O futebol que acabou? Não. Resolvido. Vais ser uma narrativa. 

Ao entrar no quarto todo desarrumado, a lâmpada do abajur não acendeu. Pretexto para não continuar as leituras. Sobre a mesa de cabeceira, livros sortidos. Livros que li e outros que estava lendo. Machado de Assis sorria para mim com a Missa do Galo, O Espelho, O Caso da Vara. Contos clássicos. Fiódor Dostoiévski me convidava a mergulhar em Noites Brancas. Não estava nem aí para as burocracias que Liev Tolstói, em A Morte de Ivan Ilitch, queria me apresentar. Para completar, outras folhas soltas de Jorge Luis Borges que, naquele dia, estaria, se vivo, completando 121 anos. 

O sono toma conta de mim. Os olhos não se aguentam abertos. Logo me vejo no meio de uma rua que conheço, onde tem uma casa amarela que já foi vermelha algum dia. Na porta dessas casas, caixas de livros, com páginas amareladas, amarrotadas e corroídas pelo tempo completavam o cenário que não me deixava de ser familiar. Continuei a flutuar nos sonhos. Aquelas casas seriam livrarias ou os famosos cafés de Buenos Aires? Sim, estou na Avenida 25 de Mayo. Entrei. Reconheço as paredes forradas com madeira até o teto e os quadros antigos. Café Tortoni, um dos mais tradicionais da capital argentina. A luz ainda era amarelada, mantendo a memória da boêmia que tem viva em seus bares e confeitarias. Comecei a escutar um tango, era o A Media Luz (Corrientes tres cuatro ocho, um telefón que contesta, vejos tangos de mi flor, Y un gato de porcelana..). No lado direito do salão, ao fundo, Jorge Luis Borges, Carlos Gardel e Alfonsina Storni tomavam um vinho e comentavam a vida portenha. Na minha pasta, vários dos contos de Borges: O Aleph, A biblioteca de Babel, O outro, Funes el memorioso, A memória de Shakespeare. Obras que englobam as características regionalistas, que marcaram um tempo em que o tango pertencia às classes baixas e fazia eco às facadas em Palermo. Outra vertente, que mantinha a categoria crítica, o escritor analisava escritores inventados de livros que falavam de outros livros. No fim, Borges passou pela esfera Universal, abordando assuntos filosóficos em torno de Deus e as Suas criações. 

Um escritor sabe quando escreve um texto de qualidade: tem noção se é bom ou se é ruim. Fui mostrar para Borges os ensaios que tinha rascunhado, quando me veio à cabeça uma passagem do Aleph, em que Carlos Argentino queria a aprovação de Borges nos poemas com fraseados bilíngues, sem rima e com três alusões eruditas à Odisseia, de Ulisses. Certifiquei-me de que não me confundiria com o oponente. Não queria receber a mesma hostilidade destinada a Carlos, já que Borges testemunhou as cartas obscenas dirigidas a ele por Beatriz, mulher que o encantou, mas que, nessa rivalidade, ficou em desvantagem. Aproximei-me e, em sussurro, segredei que queria, eu, um sonhador, que Borges fizesse uma apreciação crítica de meus escritos. Com a voz calma e rouca, ele respondeu: — Eu posso. Os textos são seus?

Os olhos procuraram palavras. Cada frase era perfeita, mas as sentenças, as ideias não tinham brilho, coisas que um escritor tem que usar para inebriar o leitor. Cada comentário de Borges fazia com que me apequenasse, Paulo, Nádia, Susana e todos os meus colegas da Oficina de produção psicanalítica e literária estavam no Café Torloni, e ouviram o fechamento da análise:

— “Preciso anotar seu nome”, pediu uma folha para a Alfonsina e completou: “Esse é o livro mais estranho que já vi. Três capítulos impressos! E o resto todo em branco”.

Acordei sobressaltado, o coração palpitava, a cama estava molhada de suor. Despertei a minha mulher, que sempre leu meus textos, fazendo as correções que fossem necessárias e disse: — “Ainda bem que foi um sonho. Alcança-me um copo d`agua”.
Publicado na Coletânea IMORTAIS IV,
da Editora
Alternativa em fevereiro de 2021

https://www.editoralternativa.com/product-page/colet%C3%A2nea-imortais-iv


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Dois Mundos


Existem seguidores de Maomé, de Buda, de Jiangshi. Também há os adoradores de Orixás, de Jó e até de Qohélet. O maior número está no grupo dos devotos de Deus, que chamarei de Senhor. É Ele o dirigente de Yggdrasil, um sistema cujos frutos têm o poder de curar qualquer doença e até mesmo de salvar quem está à beira da morte.

    O Senhor já havia, em outra circunstância, castigado Adão e Eva. Foram expulsos do Éden, visto que Eva, seduzida pela serpente, provou da árvore proibida o fruto. Nasceu aí o desapontamento do Senhor e, também, o pecado e a desobediência. Ele malogrou na tentativa de se fazer temido. Usou, como retaliação, a água para forçá-los a serem fiéis às doutrinas e aos Seus dogmas. Pediu para Moisés divulgar quais seriam as leis, escritas nas tábuas velhas que tinha, porque, na época, não havia Internet e nem televisão. Chamou Aarão e ordenou:


    Aarão, não conte à Mirian e nem ao seu irmão, pois ele já falhou comigo quando Eu pedi que libertasse o povo de Israel. Até hoje brigam por Moisés não ter conduzido as negociações como deveria e, além do mais, a tua irmã vai contar para as amigas. Preste atenção: dentro de quarenta dias vai começar a chover e um grande dilúvio varrerá da terra os males. Para isso, tens que falar com o Noé, um carpinteiro, filho do Lameque, para que construa uma Arca e nela leve um casal de cada espécie.


    Aarão, assustado como sempre, conhecedor da maneira rude do seu Senhor, foi e contratou uma equipe de engenheiros, que passavam de reunião em reunião trocando mensagens entre si, até que, em certo momento, para que o projeto encomendado fosse mais perfeito, resolveram conferir os currículos dos que estavam trabalhando. Ao analisarem o perfil de Noé, verificaram que ele não tinha curso superior e, de posse disso, ordenaram ao Chefe do RH que o demitisse. Assim foi feito.


    Passaram-se quarenta dias e a Arca não ficou pronta. Mesmo que insistissem com o Senhor para alterar a data final do detalhamento e execução do trabalho, não houve novo prazo. De repente, avistaram ao longe um barco em proporções colossais. 


    Aarão, perplexo, perguntou:

- O que é aquele vulto que passa lá?

Responderam em uníssono:

- É o Noé que construiu aquela Arca, parecida com a do nosso projeto.

    

    Depois de ter castigado Adão e Eva e de não ter obtido, com as missões dadas a Moisés e a Aarão, os resultados esperados, o Senhor arremeteu-se novamente contra a humanidade. Transformou em sangue as águas do Rio Nilo. Cobriu a Terra com rãs. Infestou homens e animais com piolhos. Escureceu as nuvens com gafanhotos, que, na visão autoritária Dele, nada adiantou. As coisas foram cada vez piorando: homens desrespeitosos passaram a profanar estátuas e a praticar adultérios à revelia. Governantes, desorientados, começaram a pregar o uso de drogas sem a aprovação da OMS (Organização Moderadora do Senhor).


***

    Em Banquete promovido por um certo filósofo grego, homens beberam até cair, discorrendo sobre o amor. O mesmo filósofo descobriu uns sujeitos em uma caverna e os manteve de costas para que não vissem a luz e não soubessem dos prazeres da vida: a mulher pelada, o jogo do bicho e o carnaval. Como não tinham o que comer, se alimentavam de morcegos.


    A fala em Praça Pública, como deve ser a República, foi o pináculo de sua existência. Atraiu para si vários seguidores. Um deles, o mais fiel, depois de dizer que: “só sabia que nada sabia ”, morreu em defesa da vida virtuosa e da moral – suas grandes preocupações.


    Um velho de barbas longas e amareladas, que morava nas montanhas em uma caverna e, também, se nutria de morcegos, desceu e proferiu: “se queres o caminho para ti mesmo? Detém-te um pouco mais e me escuta ”. Assim falou Zaratustra.


***

    Com todas as desobediências e os sacrilégios perante o Senhor, Ele resolveu confabular agora com uma divindade de nome Jiangshi, que teve origem em corpos que ressuscitaram de pessoas cuja alma não conseguia deixar a matéria. Jiangshi, para se manter, sugava a essência vital (o ki ) dos outros, e sugeriu ao Senhor – para resolver o mal, outra vez gestado pela humanidade – criar uma pandemia. Segundo Jiangshi, será uma doença contagiosa que se alastrará em todas as regiões e não poupará ninguém. Com isso, o Senhor buscará libertar aqueles homens que estavam na caverna, cegos e surdos para o mundo, por viverem de costas para uma verdade luzente. Eles, libertos, junto com o velho das montanhas, sairão propagando a paz e o amor livre, mostrando que não é necessário crer Nele e tampouco seguir as leis. Os eloquentes discursos e seus exasperados perdigotos serão os vetores que contaminarão uns aos outros. Líderes de outras tribos, praticantes do totemismo,

brigarão entre si e a animosidade imperará. Depois que poucos ficarem na Terra por terem perdido seus amigos, familiares e colegas, dar-se-ão conta de que outros, de alma purificada, habitarão o mundo, que Adão e Eva não souberam respeitar, ao instituírem o pecado.


    Assim sendo, uma grande Assembleia dos Deuses foi convocada para transmitir o que ficou acertado entre o Senhor e Jiangshi. Muitas informações vazaram a partir daí e geraram inúmeras fake news . O medo e a paranoia se instauraram. Diante dos rumores e do clima tenso, o Senhor, ao ser cobrado, precisou se retratar. Arrematou: conforme Jiangshi, todos os não tementes a Ele sucumbirão, não importa o deus que sigam, não importa a cor nem a idade, basta serem humanos.

Aos peixes, às aves, às plantas e aos animais, nada acontecerá: eles vivem de acordo com as Leis da Natureza e não cometem adultérios.


***

    Passaram-se dois mil anos. Morreram milhares de pessoas. Quando todos pensavam ser tudo aquilo uma pilhéria, uma nova sociedade surgiu, com outros costumes: no Yggdrasil todos se reportam agora a uma só divindade. Os rostos estão iguais ao usarem sobre a boca e o nariz um adorno que vai da cor branca à preta, para que as secreções não se espalhem. Corpos conseguiram se libertar da alma e neles a seiva da vida prospera, sem que ninguém mais precise ficar de costas

para a luz. As crianças aprenderam a se comunicar através da imagem produzida em vídeos. Os limites geográficos terminaram. Não existem mais fronteiras para que não se repitam mais as cenas de Aylans, Oscars e Valérias . Por um mundo sem fronteiras, caso contrário, outras tragédias virão.


    A pandemia, provocada pelo Jiangshi, no mundo chamado Yggdrasil, deixou o Senhor satisfeito pela seleção e pelos cortes feitos, que otimizaram a imagem e a imaginação. Com isso, pensa Ele, novos estilos de vida, novas rotinas, com a implementação do distanciamento controlado, também evitarão os conchavos e os complôs contra Seus inimigos. Ninguém mais se achará acima das leis.

Predominará o compromisso com o bem comum.


Texto publicado na forma se sátira na 

Coletânea Palavras 2020, 

Associação de Jornalistas e Escritores do Brasil, 

coordenado por Eliane Tonello






domingo, 13 de setembro de 2020

CEM ANOS do FIORELLO STONA E ALGUMAS LEMBRANÇAS

CEM ANOS do FIORELLO STONA E ALGUMAS LEMBRANÇAS

                No Dia dos Pais, em Dois Mil e Onze, resolvi ter uma conversa imaginaria com nosso pai. Meu, da Maria Helena, do João Dilmar, da Rosane, da Vera e da Claudia. Naquele ano, tínhamos menos experiência que temos hoje. O mundo era outro bem diferente. Minha conversa inventada para ter com ele foi bem coloquial, e se caso, hoje, fossemos fazer uma comparação entre os anos 20, quando ele nasceu, falaríamos sobre guerra, ditaduras, crises. Mas afinal sobre qual década 20 estamos falando se uma se parece com a outra? Paro e volto a misturar trechos de quando ele faria 90 anos e hoje, quando estaria fazendo 100 anos. Cem anos é sempre um aniversário mágico e marcante, idade que todas as pessoas pensam um dia alcançar e não foi diferente com ele, que também sempre dizia que chegaria comemorar seu centenário. Não conseguiu.

 

            Naquele ano dois mil, muitos dos amigos dele ainda perguntavam pelo Fiorello, hoje, eles também não existem mais. Naquela época eu tinha sessenta anos, hoje temos todos dez anos a mais e nos levantamos com uma vontade imensa em dar um abraço nele e dizer que o churrasco seria feito por nós. Hoje todos estaríamos presentes, até mesmo aqueles que ele não conheceu. Cantaríamos os parabéns e ele apagaria as cem velinhas que a Hilda colocaria sobre o bolo mais bonito já feito por ela. Hoje São Sepé estaria em Festa na casa dos Stonas.

 

            Filhos iriam para a terra que ele escolheu para morrer. Netos por ordem de idade, Alexandre, Hygor, Priscila, Deborah, Fernando, Juliana, Fabrício, Filipe, Laura e Bruno fariam o coro e apresentariam uma coreografia especial, onde cada um diria onde estão e o que estão fazendo. O cordão da apresentação seria puxado pelo mais novo da família, o bisneto Gregório.

 

 

            Quando ele faria 90 anos eu disse que ele era de uma época que fumar era bonito, um símbolo do galã, do homem bonito. Hoje os dias são outros. Fumar é feio, mas tem outras coisas que os dias de hoje consideram bonitas, mas que com certeza ele não se adaptaria a ela. Isto foi um paciente do meu amigo Dr. Quintanilha que disse pela insistência na recomendação para que o paciente parasse de fumar. Fiorello fumou a vida toda, como disse no início, era um outro conceito de vida.      

 

            Lembro que naquela época falei que os cientistas diziam que já tinha nascido a pessoa que viveria os 150 anos. Pois é, tudo está se confirmando, todos os dias lemos nos jornais, famílias comemorando o aniversário daqueles que ultrapassaram a faixa dos 100 anos, mesmo estando o mundo passando por uma pandemia onde já alcançou a marca de 921.000 mortes ao total no mundo, no Brasil, mais de 132.000 brasileiros mortos. Esta pandemia foi a responsável pelo cancelamento do III Encontro dos Stonas que teria sido no Mato Grosso, onde mora a irmã Santa Filipetto, hoje com 86 anos, casada com o Romeu Filipetto. Não tem problema, faremos no ano que vem e lembraremos a todos.

 

            Lembrar do Fiorello, hoje quando estaria fazendo 100 anos é lembrar de muitas


 

            Minha infância em particular, foi de um guri de calças curtas feitas por ele com todo o carinho. É lembrar da adolescência vivida em Jaguari, onde tive a primeira queda de bicicleta de duas rodas que ganhei. Queda que serviu para que eu aprendesse que durante a vida teria tantas outras quedas bem maiores, mas que sabiamente ele ensinava a suportar, e delas levantar.

 

            Fiorello nunca desistiu em ensinar o bem para os filhos. Insistiu com a prática do amor ao próximo, com energia, através de exemplos. Nosso pai, nos presenteou com a virtude do equilíbrio, com a construção da Paz. Foi o esteio moral da família, um homem sempre temente e respeitador ao Deus que ele acreditou a vida toda. Cultivou bons costumes, os quais todos procuramos seguir com honradez, e passamos aos nossos filhos, como um ensinamento cultivado pela família.

 

            Hoje o cemitério ficou mais bonito. Todo florido e decorado com aptidão, uma


forma de homenagear o centenário do homem que escolheu a terra do Índio Sepé Tiaraju para se instalar e trabalhar no ramo do comércio do vestuário masculino, deixando as pessoas mais bonitas como dizia ele.

 

Parabéns Fiorello Stona, tua esposa, filhos, genros e noras, netos e bisnetos.


São Sepé 13 de setembro 2020.


Um grande abraço,

aquele que gostaríamos ter dado logo pela manhã.



sábado, 8 de agosto de 2020

Fiorello, um dia desse

 Fiorello, um dia desses

 

 

Seu Euzébio saiu de casa às nove horas da noite de uma sexta-feira, ninguém ficou sabendo para aonde ele foi. Ninguém tinha notícias de qual foi seu último lupanar e se mesmo assim aconteceu. Ninguém viu, na pequena cidade no centro do Estado, o homem que ao caminhar puxava de uma perna e que carregava em sua frente uma candeia.

 

A segunda-feira amanheceu marrenta, sem chuva, mas o beco estava escuro e frio, ainda com o solo molhado pelo sereno. Um ar envelhecido, difícil de respirar como que endurecido em sua quietude.

 

Passos pausados e lentos ressoavam como se fossem na noite que estava terminando, assim como terminou o óleo da candeia do Seu Euzébio. Na ladeira da viela Fernando Ferrari, uma das ruas principais no povoado que reunia, bailantas, botecos e o prostíbulo conhecido por Casa da Dona Eny, que tinha pista de dança, luz negra, mulheres sem nome próprio e tudo o mais, lá os homens do lugarejo buscavam a prática sexual pecaminosa no prazer barato, em troca de um trago de pinga e de algumas baganas qualquer. Seu Euzébio gostava do ambiente.

 

O homem com barba por fazer, ainda malcheiroso pela mistura de suor e álcool ingerido, que, pelas características descritas pela desolada Maria Aparecida, só podia ser o Seu Euzébio. Ele tinha perdido a gola do casaco e, se retirou involuntariamente do lugar em que estava, que com certeza não era na igreja que ficava em frente à praça. (Todas as igrejas no interior do Estado ficam na praça. Todas têm uma torre que se assemelha a um dedo que aponta para cima, como uma representação simbólica do dedo do Deus dos católicos


No povoado, Fiorello, um alfaiate sem diploma para colocar pendurado na parede, que hoje seria chamado de atêlier, na época alfaiataria. Apreendeu a arte da costura no Exército Brasileiro, quase que no final da Segunda Guerra Mundial. Arte de como cortar um molde e fazer um paletó, na máquina de costura que ficava no centro da alfaiataria.
O jovem alfaiate costurava naquele dia nublado, quando começou sentir no ar um cheiro azedo que se propagava conduzido pelo vento, com marcas invisíveis nas entranhas da narina amarelada pela nicotina do cigarro palheiro. O cheiro vinha da rua e entrava pela porta entreaberta junto com o homem que puxava de uma perna e  pedia socorro, para não perder o casamento com a morena cor de cuia, que ao caminhar deixa todos os outros homens loucos pelo balançar gostoso dos quadris, com jeito maroto de quem sabe o que tem e o que agrada a um homem, como foi publicado artigo da revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Morena que ao passar, deixava todos com água na boca, pelo cheiro de pecado que exalava, pelo maldoso jeito de sacodir as cadeiras, como que se flutuasse ao sabor das ondas do mar que ela nunca viu. Fiorello não  conhecia Maria Aparecida, e com certeza, bom deixa isso para lá. Ele era muito temente a Deus, e, segundo a missa que ele tinha participado no último domingo, o sacerdote disse que não se deve desejar a mulher do próximo. Bem que este entrante nem era tão próximo, mas ele não queria pecar nem por pensamento, já que era casado recentemente e não podia trair a jovem esposa.

 

Fiorello, um homem elegante. O Alfaiate (com letras maiuscula) era madrugador. Levantava cedo, fazia o chimarrão, vestia o terno e colocava a gravata com um nó ao estilo francês que aprendeu a fazer com um cantor de teatro, que, por sua vez, dizia ser o nó preferido dos frequentadores do “Moulin Rouge”. Manhã atípica. Entra em cena Seu Euzébio esbaforido, suplicando uma solução para a gola do casaco que ele perdeu e não podia chegar em casa naquele estado deprimente. A morada do Seu Euzébio era a única, e ficava perto da olaria na Vila do Barro Vermelho. Lá que ele morava com Maria Aparecida. 


Os olhares se cruzam. Um com ar de repreensão só por imaginar o que ele teria aprontado na noite anterior:
o outro, com ar de Madalena arrependida sem saber o que dizer, mas, precisando enormemente do trabalho do artista do corte e da costura que há pouco teria chegado à pequena cidade com nome de santo. Santo que era hebraico e que construiu a igreja que o filho do Senhor o recomendou, com pedras sobre pedras e, por isso mesmo, ter recebido as chaves da casa de seu pai. Fiorello sabia que não podia rejeitar serviço, Seu Euzébio poderia vir a ser um futuro freguês. Sentou-se. Costurou a gola do casaco do esmolambado e foi, como sempre fazia, polir a tesoura e fazer brasa para o ferro de passar. Outro indivíduo viria para usar os serviços do novo estabelecimento. Assim foi, outro, outro e outro.

Escrever é uma tentativa de compreender a vida. Para Arthur Schopenhauer seria o fruto, não da quantidade de leitura, mas da capacidade de perceber as coisas com a clareza da alma e, ao mesmo, tempo dialogar com os outros por prazer. É o gozo pela felicidade, mas escrever sobre lembranças e histórias que personagens do passado montam seu pensar é lembrar da alfaiataria do seu Fiorello, parado atrás do alto balcão com a fita métrica no pescoço. É lembrar da máquina de costura com pedal, que para ele era quase que como um automóvel, coisa que ele nunca teve.


Quando Fiorello estava sorvendo o chimarrão e alguém perguntava a ele pelo Seu Euzébio, responderia: Seu Euzébio nunca existiu, nem ele e nem Maria Aparecida. Seu Euzébio é um sonho, é algo do nosso inconsciente, assim como um desejo oculto castrado e vetado pela moral em nossas faculdades mentais. 

Fiorelo Stona
Fiorelo Stona aos 75 anos em São Sepé-RS
Créditos da foto: Vera Lúcia Stona


Dirceo Stona
Porto Alegre, 09 de agosto  de 2020
Dia dos Pais


domingo, 19 de julho de 2020

JORGE LUIS BORGES – Do Minotauro ao gato Beppo


JORGE LUIS BORGES – Do Minotauro ao gato Beppo


Minha história com Jorge Luís Borges começa em 1987, no mesmo ano que Moacyr Scliar publicou na Zero Hora que não sabia bem se “Instantes” era um poema ou uma autoajuda.

O impresso que ele encontrou afixado nas vitrines de Rosário, cidade portuária na Argentina, também encontrei nos andares do Hospital de Clínicas, consultórios e clínicas de Porto Alegre. “Instantes”.  Este era o título do folhetim que teria como autor o escritor argentino Jorge Luís Borges. Poesia com a mesma linha de Epitáfio”, cantada pelos Titãs em 2002.

Em uma aula de Filosofia na antiga Faculdade IDC - Instituto de Desenvolvimento

Cultural, na Rua Vicente da Fontiura com o Prof. Richer de Souza, no Grupo de Estudos sobre Borges, fiquei sabendo que o texto não tinha sido escrito por Borges.  Era A fragilidade da falsificação, como chamou Moacyr Scliar, em um especial para a Folha de São Paulo, em dezembro de 1995.

Instantes” foi escrito pela norte-americana Nadine Stair, segundo contou Maria Kodoma, viúva do escritor argentino, em um desabafo a Scliar, Borges nunca escreveria “Se eu pudesse viver novamente minha vida...” Seria uma infâmia supor tamanha desilusão de Borges com sua vida. O sucesso do texto se deu talvez, porque o leitor quer que sua vida, seja como termina a poesia: “se tivesse outra vida pela frente. Mas já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo”, e como também, os Titãs dizem na letra: “Queria ter aceitado a vida como ela é, enquanto eu andar distraído”. Hoje lendo o que Borges escreveu, também eu sei que ele nunca escreveria aquilo.

            

“FUNES, O MEMORIOSO”

Depois de “Instantes” meu contato com as escritas de Borges foi através da prosa “Funes, o Memorioso”.  Era um uruguaio, como disse Pedro Leandro Ipuche, precursor dos super-homens; “Um Zaratustra cimarrón e vernáculo”, não o discurso, mas por ser natural de Fray Bentos, capital do departamento de Rio Negro, na fronteira com a Argentina, onde Borges escreve floreios, para dar vida ao texto, seria o lugar onde deveria veranear com seu pai, mas o que não tem como ter ocorrido, já que Ireno Funes nasceu em 1868 e Borges em 24 de agosto de 1899, logo, 31 anos antes que o conto foi escrito.

Borges gostava de jogar com datas e números. Falava em Funes como se o tivesse encontrado em 1884 (15 anos antes dele nascer).  No estilo proseado, descreve recordações, dizendo não ter o direito de pronunciar tal palavra porque, segundo ele, se tratava de um verbo sagrado. Apenas um homem na face da terra teria direito de usar este substantivo que remete a lembranças, e ele, aquele que poderia usar, já estava morto e se chamava de Ireno Funes, conhecido por não se dar com ninguém em Fray Bentos, no Uruguai.

Entre as idas e vindas do narrador a Fray Bentos, Ireno aprendeu sem muito esforço o Inglês, o Francês, o Português e o Latim, mas não era capaz de pensar.  Disse que antes de cair do “azulengo” (cavalo no qual costumava montar), era como todos os cristãos, um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado.  Funes, durante 19 anos, viveu como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo e, ao cair, perdeu o que conhecia.  Quando recobrou a memória, tudo então era lembrado e as percepções eram infalíveis, sabia as formas das nuvens de 30 de abril de 1882, as dobras de um livro e as linhas de espuma que o remo levantou no Rio Negro.  Considerava sua memória um depósito de lixo.

Borges descreve que Funes, em 1886, elaborou um sistema numérico que ultrapassava 24.000 unidades.  Seu descontentamento com a descoberta foi que 33 uruguaios precisavam de dois signos e três palavras ao invés de uma só palavra e um só signo.

Ele aplicou a forma descoberta a outros números.  Em vez de dizer 7013, dizia Máximo Péres; no lugar de 7014, dizia A Ferrovia e assim por diante.  Outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre.  Cada palavra tinha um signo.

Borges, incorporado na figura de Funes, segue jogando com números e signos. Invoca o pai do Liberalismo, John Locke, no século XVII que disse que: "a mente humana era como uma tábua rasa, uma folha em branco em um idioma impossível, onde cada coisa tem um nome próprio". Para Locke, que a memória é essencial e necessária, agindo como um ponto de partida. Borges tendo sido um bom leitor, deve ter sofrido a influência desta afirmação.

Para Funes, era muito difícil dormir e durante uma ocasião disse a Borges, que dormir seria como distrair-se do mundo e pensar servia para esquecer diferenças, e que, em seu mundo havia só detalhes.


A BIBLIOTECADE BABEL


Depois de "Funes, o Memorioso", no Grupo de Estudos de Borges, me deparo com “A Biblioteca de Babel”.  Outro texto onde Borges joga com os números e força nossa imaginação é em “Funes, o Memorioso”, em que abordou a memória de um homem.  Neste outro, ele explora a memória preservada em livros.  Diz que a biblioteca é como um universo composto de um número indefinido de galerias hexagonais, com 20 prateleiras em 5 grandes longas estantes de cada lado, em uma altura de dois andares, com dois minúsculos sanitários e no vestíbulo há um espelho. Este espelho duplica as aparências, algo que o leva a deduzir que a biblioteca não é infinita, pois se o fosse, não haveria a necessidade do espelho.

Em “A Biblioteca de Babel”, cada muro hexágono correspondia a 5 estantes, cada uma delas com 32 livros, cada livro com 410 páginas, cada página com 40 linhas e umas 80 letras.  A biblioteca existe e o número de símbolos ortográficos é de 25, que enumeram o desconhecido, que depois de 300 anos fundamentam uma biblioteca que permitiu a um bibliotecário também descobrir a lei que fundamenta a Biblioteca.  Diz Borges em seu texto que todos os livros, por diversos que sejam, contam com elementos iguais, mas não há dois livros idênticos e que, em suas prateleiras, registra todas as possíveis combinações dos 20 e tantos símbolos ortográficos. Também diz que a escrita metódica o distrai da condição humana, suspeitando que a espécie humana está prestes a se extinguir, mas a Biblioteca continuará com todas suas características. e lá encontra-se qualquer livro que seja pensado.

No meio da pandemia. No século XXI, a palavra de ordem é reinventar. Surgem aulas e cursos por videoconferência. Na terceira edição do projeto Avatar, criado pelos Professores Rafael Werner e Keylla Jung,  o tema foi “Minotauro, vida e morte - A casa de Astérion”, de Jorge Luiz Borges.


 MINOTAURO, VIDA E MORTE – A CASA DE ASTÉRION

O conto apresenta uma situação que nos traz ao momento que estamos vivendo hoje quando diz: “É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que suas portas cujo número é infinito estão abertas dia e noite aos homens e aos animais...

Borges repete o jogo de palavras e brinca com os números, como nos outros textos. Deixa claro que não se interessa pelo que o homem possa transmitir a outro homem, e que pensa como o filósofo, que nada é comunicável pela arte escrita e que nunca guardou a diferença entre uma letra e outra.  Percebemos que isto não confere quando ele escreve “A Biblioteca de Babel”.  Na personagem de Astérion, repete as galerias hexagonais, a posição dos labirintos ao mostrar a casa dos sonhos para o outro Astérion, quando diz: “Agora voltamos à encruzilhada anterior” ou “Agora desembarcamos em outro pátio” ou, segue ele: “Agora verás uma cisterna que se encheu de areia e verás como o porão se bifurca”.

Assim, Borges conclui:

        “Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após o outro, caem, sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me magoa, porque sei que vive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meus ouvidos alcançassem todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu”.

 

BORGES EM SUA CASA. UMA ENTREVISTA DE MARIO VARGAS LLOSA.

 

Em 1981, Borges concede uma entrevista a Mario Vargas Llosa, publicada no jornal El Pais, no dia 14 de junho de 2020, publicou no caderno Literatura.  Conversa inédita que agora vai fazer parte do livro “Medio siglo com Borges”.  A entrevista aconteceu no apartamento que Borges tinha no centro de Buenos Aires, onde morava acompanhado de sua empregada que lhe servia de guia - Borges perdeu a visão há anos.  Lá também tinha um gato que foi batizado de Beppo, nome que ele copiou do gato de Lord Byron, poeta inglês de quem muito gostava.

Da entrevista, a qual disponibilizo o link para leitura na íntegra, pincei tiradas fenomenais de Borges, como:

Tenho muito cuidado com minha biblioteca. Quem sou eu para me comparar com Schopenhauer.”


Quando Mário Vargas Llosa lhe pergunta:

            “- Por que na sua biblioteca não estou vendo os livros que foram escritos sobre você”?

Borges responde que leu em Mendoza o primeiro livro que foi publicado sobre sua vida e foi durante a ditadura, cujo o nome ele não quer nem lembrar, reforça que sempre é bom evitar algumas palavras.  O nome do livro é “Borges Enigma y Clave”, escrito por um boliviano. Diz que leu o livro para ver se encontrava a solução, já que o enigma, ele conhecia.

Depois, ao se referir ao livro de Alicia Jurado, do ano de 1964 - escritora argentina, membro da Academia Argentina de Letras, chamado “Genio y figura de Jorge Luís Borges”, disse a ela que se tratava de um bom livro, mas que o assunto não lhe interessava, ou talvez lhe interessasse muito, logo, não iria ler. Em 1976, Alicia escreveu um livro com Borges - “Que es el budismo”.

Perguntado se estava contente com seu destino, Borges disse que não, que não estava contente, mas que sabia que se lhe fosse dado outro destino, ele seria uma outra pessoa, e então cita Spinoza, “cada coisa requer a solidão de seu ser” e quando foi lembrado por Llosa sobre uma frase que diz “Muitas coisas li e poucas vivi”, demonstrou uma certa tristeza.  Borges frisa que quando escreveu isso, ele tinha trinta anos e que naquela época não se dava conta de que ler era também uma forma de viver.

Ainda na entrevista publicada por El Pais, Llosa e Borges falam em autores como Joseph Conrad e o contista e romancista Henry James.  Em Quando Yeats, Philip Dick e Borges usaram um tarô para escrever seus livros, e quais os livros Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan compravam em Paris.  Sobre Bertrand Russell, o filósofo que disse sim ao amor livre e não à guerra, Borges responde que ele tinha razão ao se opor à guerra, e que talvez seja preciso mais coragem para se opor à guerra do que para defendê-la e até mesmo participar dela.

A entrevista ocorreu em Buenos Aires, em junho de 1981.

                                                          




N.A: - Prolonguei bastante a escrita deste post. Falar sobre Borges me empolga. Diferente da biblioteca de “A Biblioteca de Babel”, onde a capacidade de armazenamento era interminável, também diferente da memória sem fim de Ireno Funes, em “Funes, o Memorioso”, o meu computador não possui HD suficiente para armazenar todas as coisas ditas e escritas por Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, que hoje, faz parte junto com Gardel e Alfonsina do Café Tortoni, dessa forma recomendo a leitura. Não ter memória, esquecer facilmente das coisas passadas, incomoda a muitos leitores, mas pensemos:

Problema mesmo seria nunca esquecer nada, como no caso de Ireno, não esquecer nada das coisas que se passaram em nossa vida”. - Já imaginou?

Dirceo Stona

Porto Alegre - Brasil


sábado, 16 de maio de 2020

A morte do cachorro no contexto da vida

A morte do cachorro no contexto da vida

O cão como pessoa


 Meu propósito não é repetir uma história já contada. Dos dias e noites que a compõem, só́ me interessa uma noite; do resto não contarei, senão o indispensável para que essa noite seja entendida 

  
D’Jango morreu. Morreu uma pessoa em mim.

            Para muitos pensadores, pessoa é um ser vivo que  sente dor e tem sentimentos. Para Kant, pessoa é, não ‘só um  sujeito de direitos, mas também quem possui valor absoluto e  existe como fim. Já para John Locke pessoa é, um ser  inteligente e pensante dotado de razão e de reflexão.

D'Jango era tudo isso.
 
            Antes de prosseguir, alguns dos fatos que poderiam ser finais neste post, devo registrar agora. Devo registrar também, que acredito na evolução da espécie e no aperfeiçoamento das raças pela seleção genética, principalmente dos animais domésticos. Acredito que a linguagem, hoje, faz parte na diferenciação entre os humanos e os outros seres existentes no mundo, para não sairmos deste universo, onde existe algo em comum com a linguagem. Foi a falta da linguagem que fez o D’Jango sofrer, ele ainda não tinha aprendido a usar a palavra para se comunicar e dizer onde que estava doendo.

            Tenho dito, e não vou errar não, que os cachorros daqui a 300 anos vão falar. Foi a falta da linguagem falada, do jogo fisionômico do tom de voz que levou D’Jango a se comunicar com atos e ações, para dizer que estava mal. Ele estava muito mal.

            Em um sábado, dia 02 de maio, perto da meia noite, em plena vigência do Isolamento Social estabelecido pelo Governo do Estado do RGS, pelo risco de contaminação com o novo coronavírus Covid-19, que o D’Jango - nosso personagem - ao ver nossa movimentação no Cantegril/Viamão, interpretou como se fossemos sair e irmos para Porto Alegre, como sempre fazíamos nessa hora, e por entender que isso ocorreria, deitou-se no chão frio da garagem, onde todos o enxergavam, fazendo-se de morto, como quem dissesse: 

- “Por favor não me deixem aqui, eu estou mal


            Talvez seja oportuno dizer que em 30 de setembro de 2018, no post “Sobre a questão da morte”, eu disse que conseguia lidar bem com ela, que conseguia lidar com a morte sem problema, que a tenho simplesmente como um fenômeno natural, pois, dizia eu, que a considero como um evento onde todos os seres vivos participarão. Verdade, mas tenho que hoje fazer uma correção. A morte do D’Jango me fez repensar este conceito. A morte do D’Jango me afetou e eu parei para pensar o porquê de ela ter me afetado ao ocorrer neste ser que nos sábados e domingos esperava meu churrasco, que vinha na minha janela abanar o rabo como que dizendo Bom Dia e que  estava sempre feliz. Descobri. 

         A morte daquele cachorro preto com manchas cor de mel e grande  companheiro, que corria pelo pátio e brincava alegremente com a Melina, uma linda cadela viuva de dois cães  me afetou. Me afetou porque ele não tinha evoluído o suficiente e, mesmo sabendo se comunicar, não tinha aprendido a usar a linguagem das palavras no modelo lógico de dizer coisas, mesmo que elas não tivessem sentido. Falando nisso, Wittgenstein afirmou que:
 “representar na linguagem algo que contradiga as leis lógicas é tão pouco possível quanto representar uma figura que contradiga as leis do espaço”.  

         Porém, esta delimitação aparente e sufocante, estabelecida pelos limites da linguagem entre ele e eu, foi o que me fez sofrer, por não entender a intensidade da dor que ele vinha sentindo e com isso, procurar na ciência uma forma de ajudá-lo.

         O ser humano que navega no mesmo plano, que usa a mesma linguagem falada, inclusive se valendo do uso, do jogo das mímicas e do tom da voz, sabe como sinalizar onde está doendo algo em seu corpo, sabe demonstrar com clareza seu sofrimento, o animal não. O animal não sabe.

         O animal não sabe, ainda, usar um tipo de comunicação ou o humano não sabe ler na comunicação animal o sofrimento pela dor, e é esta dificuldade de não entender o sinal que eles emitem que produz o sentimento de culpa em nós seres humanos. O sentimento de culpa, surge em nós por não entendermos os sinais dados pelo animal, que aliás é o mesmo sinal dado um potencial ser humano suicida, que sempre dá antes de provocar sua própria morte e lamentavelmente não sabemos interpretar.

           O final da nossa história só poderia terminar com esta narrativa em metáforas, por ela se passar em tempos diferentes, onde a conversa tampouco existiu, nem com um nem com outro. Não quero que me tome por herege, nem me odeie por sustentar a ideia contrária dos que conversam com Deus e nem por pensar diferente dos que seguem os ensinamentos das religiões e suas divindades. São minhas reflexões.

            O D’Jango morreu como morreu o “Gumma”, o “Bolinha”, o “Nicollau”, o Buss e a “Athina”. O D’Jango morreu em 9 de maio de 2020 às 20h40 minutos.