Existem seguidores de Maomé, de Buda, de Jiangshi. Também há os adoradores de Orixás, de Jó e até de Qohélet. O maior número está no grupo dos devotos de Deus, que chamarei de Senhor. É Ele o dirigente de Yggdrasil, um sistema cujos frutos têm o poder de curar qualquer doença e até mesmo de salvar quem está à beira da morte.
O Senhor já havia, em outra circunstância, castigado Adão e Eva. Foram expulsos do Éden, visto que Eva, seduzida pela serpente, provou da árvore proibida o fruto. Nasceu aí o desapontamento do Senhor e, também, o pecado e a desobediência. Ele malogrou na tentativa de se fazer temido. Usou, como retaliação, a água para forçá-los a serem fiéis às doutrinas e aos Seus dogmas. Pediu para Moisés divulgar quais seriam as leis, escritas nas tábuas velhas que tinha, porque, na época, não havia Internet e nem televisão. Chamou Aarão e ordenou:
Aarão, não conte à Mirian e nem ao seu irmão, pois ele já falhou comigo quando Eu pedi que libertasse o povo de Israel. Até hoje brigam por Moisés não ter conduzido as negociações como deveria e, além do mais, a tua irmã vai contar para as amigas. Preste atenção: dentro de quarenta dias vai começar a chover e um grande dilúvio varrerá da terra os males. Para isso, tens que falar com o Noé, um carpinteiro, filho do Lameque, para que construa uma Arca e nela leve um casal de cada espécie.
Aarão, assustado como sempre, conhecedor da maneira rude do seu Senhor, foi e contratou uma equipe de engenheiros, que passavam de reunião em reunião trocando mensagens entre si, até que, em certo momento, para que o projeto encomendado fosse mais perfeito, resolveram conferir os currículos dos que estavam trabalhando. Ao analisarem o perfil de Noé, verificaram que ele não tinha curso superior e, de posse disso, ordenaram ao Chefe do RH que o demitisse. Assim foi feito.
Passaram-se quarenta dias e a Arca não ficou pronta. Mesmo que insistissem com o Senhor para alterar a data final do detalhamento e execução do trabalho, não houve novo prazo. De repente, avistaram ao longe um barco em proporções colossais.
Aarão, perplexo, perguntou:
- O que é aquele vulto que passa lá?
Responderam em uníssono:
- É o Noé que construiu aquela Arca, parecida com a do nosso projeto.
Depois de ter castigado Adão e Eva e de não ter obtido, com as missões dadas a Moisés e a Aarão, os resultados esperados, o Senhor arremeteu-se novamente contra a humanidade. Transformou em sangue as águas do Rio Nilo. Cobriu a Terra com rãs. Infestou homens e animais com piolhos. Escureceu as nuvens com gafanhotos, que, na visão autoritária Dele, nada adiantou. As coisas foram cada vez piorando: homens desrespeitosos passaram a profanar estátuas e a praticar adultérios à revelia. Governantes, desorientados, começaram a pregar o uso de drogas sem a aprovação da OMS (Organização Moderadora do Senhor).
***
Em Banquete promovido por um certo filósofo grego, homens beberam até cair, discorrendo sobre o amor. O mesmo filósofo descobriu uns sujeitos em uma caverna e os manteve de costas para que não vissem a luz e não soubessem dos prazeres da vida: a mulher pelada, o jogo do bicho e o carnaval. Como não tinham o que comer, se alimentavam de morcegos.
A fala em Praça Pública, como deve ser a República, foi o pináculo de sua existência. Atraiu para si vários seguidores. Um deles, o mais fiel, depois de dizer que: “só sabia que nada sabia ”, morreu em defesa da vida virtuosa e da moral – suas grandes preocupações.
Um velho de barbas longas e amareladas, que morava nas montanhas em uma caverna e, também, se nutria de morcegos, desceu e proferiu: “se queres o caminho para ti mesmo? Detém-te um pouco mais e me escuta ”. Assim falou Zaratustra.
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Com todas as desobediências e os sacrilégios perante o Senhor, Ele resolveu confabular agora com uma divindade de nome Jiangshi, que teve origem em corpos que ressuscitaram de pessoas cuja alma não conseguia deixar a matéria. Jiangshi, para se manter, sugava a essência vital (o ki ) dos outros, e sugeriu ao Senhor – para resolver o mal, outra vez gestado pela humanidade – criar uma pandemia. Segundo Jiangshi, será uma doença contagiosa que se alastrará em todas as regiões e não poupará ninguém. Com isso, o Senhor buscará libertar aqueles homens que estavam na caverna, cegos e surdos para o mundo, por viverem de costas para uma verdade luzente. Eles, libertos, junto com o velho das montanhas, sairão propagando a paz e o amor livre, mostrando que não é necessário crer Nele e tampouco seguir as leis. Os eloquentes discursos e seus exasperados perdigotos serão os vetores que contaminarão uns aos outros. Líderes de outras tribos, praticantes do totemismo,
brigarão entre si e a animosidade imperará. Depois que poucos ficarem na Terra por terem perdido seus amigos, familiares e colegas, dar-se-ão conta de que outros, de alma purificada, habitarão o mundo, que Adão e Eva não souberam respeitar, ao instituírem o pecado.
Assim sendo, uma grande Assembleia dos Deuses foi convocada para transmitir o que ficou acertado entre o Senhor e Jiangshi. Muitas informações vazaram a partir daí e geraram inúmeras fake news . O medo e a paranoia se instauraram. Diante dos rumores e do clima tenso, o Senhor, ao ser cobrado, precisou se retratar. Arrematou: conforme Jiangshi, todos os não tementes a Ele sucumbirão, não importa o deus que sigam, não importa a cor nem a idade, basta serem humanos.
Aos peixes, às aves, às plantas e aos animais, nada acontecerá: eles vivem de acordo com as Leis da Natureza e não cometem adultérios.
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Passaram-se dois mil anos. Morreram milhares de pessoas. Quando todos pensavam ser tudo aquilo uma pilhéria, uma nova sociedade surgiu, com outros costumes: no Yggdrasil todos se reportam agora a uma só divindade. Os rostos estão iguais ao usarem sobre a boca e o nariz um adorno que vai da cor branca à preta, para que as secreções não se espalhem. Corpos conseguiram se libertar da alma e neles a seiva da vida prospera, sem que ninguém mais precise ficar de costas
para a luz. As crianças aprenderam a se comunicar através da imagem produzida em vídeos. Os limites geográficos terminaram. Não existem mais fronteiras para que não se repitam mais as cenas de Aylans, Oscars e Valérias . Por um mundo sem fronteiras, caso contrário, outras tragédias virão.
A pandemia, provocada pelo Jiangshi, no mundo chamado Yggdrasil, deixou o Senhor satisfeito pela seleção e pelos cortes feitos, que otimizaram a imagem e a imaginação. Com isso, pensa Ele, novos estilos de vida, novas rotinas, com a implementação do distanciamento controlado, também evitarão os conchavos e os complôs contra Seus inimigos. Ninguém mais se achará acima das leis.
Predominará o compromisso com o bem comum.
Texto publicado na forma se sátira na
Coletânea Palavras 2020,
Associação de Jornalistas e Escritores do Brasil,
coordenado por Eliane Tonello
Comentário da Escritora Katia Bonfanti
ResponderExcluirA obra de Dirceo Stona nos faz caminhar com o tempo às profundezas da imaginação. Provoca-nos a estar na narrativa como passeantes vívidos no mundo de deuses, pecados e punições. A genialidade do escritor ao delinear a alegoria de “Dois Mundos” e brincar com os seus deuses também nos oferece uma apreciação sensível e crítica do momento atual. O SARS Cov II maculou nosso estado psíquico e nosso tempo histórico. Mas, não é somente sobre isso que Stona nos provoca.
A narrativa desenha dois mundos, diversos, porém com elementos convergentes. O transicional mítico apresenta o contexto atual e o imaginário de muitos, especialmente quando supõe as “pragas” e o “castigo”. No primeiro cenário temos um Senhor atuando sob as pessoas que “descumprem” traçados pré-estabelecidos. No segundo temos um vírus voraz que assolou a humanidade e exigiu rotinas sanitárias. Os mascarados, camuflados no medo, besuntados em álcool em gel não são demônios, do mundo dos deuses, são os humanos buscando modos de coabitar com o vírus e sobreviver.
Impressiona como o autor trabalha as questões políticas de modo lúdico e crítico, apoiado na filosofia.
Que mundo é esse que somos convidados a dar as costas? Esperamos Zaratustra nos apontar o
caminho!? Aquele que foi a montanha para encharcar-se de si mesmo e, então, proferir a palavra. A narrativa, complexa e entusiasmante, nos permite várias camadas de entendimento. Ao trazer Zaratustra, alude a pensar caminhos nesse “pan-tempo” e, sobretudo, lembrar como a humanidade vem tropeçando em questões ético-humanitárias. O humano do mundo está em declínio. Declinam também os comportamentos coletivos “sustentáveis” enquanto os crimes escalam degraus assustadores. Nesse intento, enxergamos o cenário das relações de poder, estabelecidas entre o Senhor, seguidores e seus oponentes. Apresenta as conflitivas que o desespero por “cura” promoveu no Senhor e como a população foi impactada e vampirizada por “Jiangshi”. A avalanche de emoção e medo incrementa as incertezas e a experimentações de fórmulas salvadoras.
Por fim, apesar do futuro assustador que a sátira nos oferece, o trocadilho com a árvore Yggdrasil, que lembra Brasil e na mitologia sugere que existe esperança de “cura” dos males da humanidade e a conexão do universo. Mas para isso há de se olhar coletivamente para o mundo, que é espaço legítimo de vírus e homens. Recomendo a leitura dessa obra densa, inteligente e contundente. Ninguém mais ficará acima das leis.
Katia Bonfanti
Escritora
.Parabéns,acabamos de ler tua crônica,dois mundos .Gostamos muito continua escrevendo.
ResponderExcluirA fertilidade da imaginação de Dirceo Stona, nos faz viajar ao além e ao aquém! Sutil transformação de todos os deuses em seres comuns e cheio de dúvidas como nós, os Humanos. Ainda bem que o Senhor impera absoluto!!!
ResponderExcluirNão é só pelas passadas que eu gosto de caminhar com o DIRÇA em manhas RECEM ACORDADAS onde não tem.barulho e eu consigo extrair PENSARES que ele acumula ba vida nossa de cada dia!!! Mas em relação ao texto,eu viajei na ESTORIA que e TAO atual e tem caras e BOCAS nestes nossos dias mas não tem a IMAGINACAO dos personagens do DIDI! FICOU fácil aprender oq aconteceu em nosso mundo desde a época de Adão e Eva até agora...onde nem vale citar nomes!!!! E me parece que AINDA existem uns que estao de COSTAS de acordo com DEUS que e contra vacinas que imunizariam os perdigotos!!! Mas isso já são OUTRAS ESTORIAS!!! continuemos a caminhar Dirca...
ResponderExcluirGrande dirceu.parabens. gostei muito
ResponderExcluirContinue escrevendo. BI.
Que texto incrível. Cheio de criatividade, audácia e inteligência. Adorei!
ResponderExcluirFlávia Bernardi