domingo, 19 de julho de 2020

JORGE LUIS BORGES – Do Minotauro ao gato Beppo


JORGE LUIS BORGES – Do Minotauro ao gato Beppo


Minha história com Jorge Luís Borges começa em 1987, no mesmo ano que Moacyr Scliar publicou na Zero Hora que não sabia bem se “Instantes” era um poema ou uma autoajuda.

O impresso que ele encontrou afixado nas vitrines de Rosário, cidade portuária na Argentina, também encontrei nos andares do Hospital de Clínicas, consultórios e clínicas de Porto Alegre. “Instantes”.  Este era o título do folhetim que teria como autor o escritor argentino Jorge Luís Borges. Poesia com a mesma linha de Epitáfio”, cantada pelos Titãs em 2002.

Em uma aula de Filosofia na antiga Faculdade IDC - Instituto de Desenvolvimento

Cultural, na Rua Vicente da Fontiura com o Prof. Richer de Souza, no Grupo de Estudos sobre Borges, fiquei sabendo que o texto não tinha sido escrito por Borges.  Era A fragilidade da falsificação, como chamou Moacyr Scliar, em um especial para a Folha de São Paulo, em dezembro de 1995.

Instantes” foi escrito pela norte-americana Nadine Stair, segundo contou Maria Kodoma, viúva do escritor argentino, em um desabafo a Scliar, Borges nunca escreveria “Se eu pudesse viver novamente minha vida...” Seria uma infâmia supor tamanha desilusão de Borges com sua vida. O sucesso do texto se deu talvez, porque o leitor quer que sua vida, seja como termina a poesia: “se tivesse outra vida pela frente. Mas já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo”, e como também, os Titãs dizem na letra: “Queria ter aceitado a vida como ela é, enquanto eu andar distraído”. Hoje lendo o que Borges escreveu, também eu sei que ele nunca escreveria aquilo.

            

“FUNES, O MEMORIOSO”

Depois de “Instantes” meu contato com as escritas de Borges foi através da prosa “Funes, o Memorioso”.  Era um uruguaio, como disse Pedro Leandro Ipuche, precursor dos super-homens; “Um Zaratustra cimarrón e vernáculo”, não o discurso, mas por ser natural de Fray Bentos, capital do departamento de Rio Negro, na fronteira com a Argentina, onde Borges escreve floreios, para dar vida ao texto, seria o lugar onde deveria veranear com seu pai, mas o que não tem como ter ocorrido, já que Ireno Funes nasceu em 1868 e Borges em 24 de agosto de 1899, logo, 31 anos antes que o conto foi escrito.

Borges gostava de jogar com datas e números. Falava em Funes como se o tivesse encontrado em 1884 (15 anos antes dele nascer).  No estilo proseado, descreve recordações, dizendo não ter o direito de pronunciar tal palavra porque, segundo ele, se tratava de um verbo sagrado. Apenas um homem na face da terra teria direito de usar este substantivo que remete a lembranças, e ele, aquele que poderia usar, já estava morto e se chamava de Ireno Funes, conhecido por não se dar com ninguém em Fray Bentos, no Uruguai.

Entre as idas e vindas do narrador a Fray Bentos, Ireno aprendeu sem muito esforço o Inglês, o Francês, o Português e o Latim, mas não era capaz de pensar.  Disse que antes de cair do “azulengo” (cavalo no qual costumava montar), era como todos os cristãos, um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado.  Funes, durante 19 anos, viveu como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo e, ao cair, perdeu o que conhecia.  Quando recobrou a memória, tudo então era lembrado e as percepções eram infalíveis, sabia as formas das nuvens de 30 de abril de 1882, as dobras de um livro e as linhas de espuma que o remo levantou no Rio Negro.  Considerava sua memória um depósito de lixo.

Borges descreve que Funes, em 1886, elaborou um sistema numérico que ultrapassava 24.000 unidades.  Seu descontentamento com a descoberta foi que 33 uruguaios precisavam de dois signos e três palavras ao invés de uma só palavra e um só signo.

Ele aplicou a forma descoberta a outros números.  Em vez de dizer 7013, dizia Máximo Péres; no lugar de 7014, dizia A Ferrovia e assim por diante.  Outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre.  Cada palavra tinha um signo.

Borges, incorporado na figura de Funes, segue jogando com números e signos. Invoca o pai do Liberalismo, John Locke, no século XVII que disse que: "a mente humana era como uma tábua rasa, uma folha em branco em um idioma impossível, onde cada coisa tem um nome próprio". Para Locke, que a memória é essencial e necessária, agindo como um ponto de partida. Borges tendo sido um bom leitor, deve ter sofrido a influência desta afirmação.

Para Funes, era muito difícil dormir e durante uma ocasião disse a Borges, que dormir seria como distrair-se do mundo e pensar servia para esquecer diferenças, e que, em seu mundo havia só detalhes.


A BIBLIOTECADE BABEL


Depois de "Funes, o Memorioso", no Grupo de Estudos de Borges, me deparo com “A Biblioteca de Babel”.  Outro texto onde Borges joga com os números e força nossa imaginação é em “Funes, o Memorioso”, em que abordou a memória de um homem.  Neste outro, ele explora a memória preservada em livros.  Diz que a biblioteca é como um universo composto de um número indefinido de galerias hexagonais, com 20 prateleiras em 5 grandes longas estantes de cada lado, em uma altura de dois andares, com dois minúsculos sanitários e no vestíbulo há um espelho. Este espelho duplica as aparências, algo que o leva a deduzir que a biblioteca não é infinita, pois se o fosse, não haveria a necessidade do espelho.

Em “A Biblioteca de Babel”, cada muro hexágono correspondia a 5 estantes, cada uma delas com 32 livros, cada livro com 410 páginas, cada página com 40 linhas e umas 80 letras.  A biblioteca existe e o número de símbolos ortográficos é de 25, que enumeram o desconhecido, que depois de 300 anos fundamentam uma biblioteca que permitiu a um bibliotecário também descobrir a lei que fundamenta a Biblioteca.  Diz Borges em seu texto que todos os livros, por diversos que sejam, contam com elementos iguais, mas não há dois livros idênticos e que, em suas prateleiras, registra todas as possíveis combinações dos 20 e tantos símbolos ortográficos. Também diz que a escrita metódica o distrai da condição humana, suspeitando que a espécie humana está prestes a se extinguir, mas a Biblioteca continuará com todas suas características. e lá encontra-se qualquer livro que seja pensado.

No meio da pandemia. No século XXI, a palavra de ordem é reinventar. Surgem aulas e cursos por videoconferência. Na terceira edição do projeto Avatar, criado pelos Professores Rafael Werner e Keylla Jung,  o tema foi “Minotauro, vida e morte - A casa de Astérion”, de Jorge Luiz Borges.


 MINOTAURO, VIDA E MORTE – A CASA DE ASTÉRION

O conto apresenta uma situação que nos traz ao momento que estamos vivendo hoje quando diz: “É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que suas portas cujo número é infinito estão abertas dia e noite aos homens e aos animais...

Borges repete o jogo de palavras e brinca com os números, como nos outros textos. Deixa claro que não se interessa pelo que o homem possa transmitir a outro homem, e que pensa como o filósofo, que nada é comunicável pela arte escrita e que nunca guardou a diferença entre uma letra e outra.  Percebemos que isto não confere quando ele escreve “A Biblioteca de Babel”.  Na personagem de Astérion, repete as galerias hexagonais, a posição dos labirintos ao mostrar a casa dos sonhos para o outro Astérion, quando diz: “Agora voltamos à encruzilhada anterior” ou “Agora desembarcamos em outro pátio” ou, segue ele: “Agora verás uma cisterna que se encheu de areia e verás como o porão se bifurca”.

Assim, Borges conclui:

        “Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após o outro, caem, sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me magoa, porque sei que vive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meus ouvidos alcançassem todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu”.

 

BORGES EM SUA CASA. UMA ENTREVISTA DE MARIO VARGAS LLOSA.

 

Em 1981, Borges concede uma entrevista a Mario Vargas Llosa, publicada no jornal El Pais, no dia 14 de junho de 2020, publicou no caderno Literatura.  Conversa inédita que agora vai fazer parte do livro “Medio siglo com Borges”.  A entrevista aconteceu no apartamento que Borges tinha no centro de Buenos Aires, onde morava acompanhado de sua empregada que lhe servia de guia - Borges perdeu a visão há anos.  Lá também tinha um gato que foi batizado de Beppo, nome que ele copiou do gato de Lord Byron, poeta inglês de quem muito gostava.

Da entrevista, a qual disponibilizo o link para leitura na íntegra, pincei tiradas fenomenais de Borges, como:

Tenho muito cuidado com minha biblioteca. Quem sou eu para me comparar com Schopenhauer.”


Quando Mário Vargas Llosa lhe pergunta:

            “- Por que na sua biblioteca não estou vendo os livros que foram escritos sobre você”?

Borges responde que leu em Mendoza o primeiro livro que foi publicado sobre sua vida e foi durante a ditadura, cujo o nome ele não quer nem lembrar, reforça que sempre é bom evitar algumas palavras.  O nome do livro é “Borges Enigma y Clave”, escrito por um boliviano. Diz que leu o livro para ver se encontrava a solução, já que o enigma, ele conhecia.

Depois, ao se referir ao livro de Alicia Jurado, do ano de 1964 - escritora argentina, membro da Academia Argentina de Letras, chamado “Genio y figura de Jorge Luís Borges”, disse a ela que se tratava de um bom livro, mas que o assunto não lhe interessava, ou talvez lhe interessasse muito, logo, não iria ler. Em 1976, Alicia escreveu um livro com Borges - “Que es el budismo”.

Perguntado se estava contente com seu destino, Borges disse que não, que não estava contente, mas que sabia que se lhe fosse dado outro destino, ele seria uma outra pessoa, e então cita Spinoza, “cada coisa requer a solidão de seu ser” e quando foi lembrado por Llosa sobre uma frase que diz “Muitas coisas li e poucas vivi”, demonstrou uma certa tristeza.  Borges frisa que quando escreveu isso, ele tinha trinta anos e que naquela época não se dava conta de que ler era também uma forma de viver.

Ainda na entrevista publicada por El Pais, Llosa e Borges falam em autores como Joseph Conrad e o contista e romancista Henry James.  Em Quando Yeats, Philip Dick e Borges usaram um tarô para escrever seus livros, e quais os livros Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan compravam em Paris.  Sobre Bertrand Russell, o filósofo que disse sim ao amor livre e não à guerra, Borges responde que ele tinha razão ao se opor à guerra, e que talvez seja preciso mais coragem para se opor à guerra do que para defendê-la e até mesmo participar dela.

A entrevista ocorreu em Buenos Aires, em junho de 1981.

                                                          




N.A: - Prolonguei bastante a escrita deste post. Falar sobre Borges me empolga. Diferente da biblioteca de “A Biblioteca de Babel”, onde a capacidade de armazenamento era interminável, também diferente da memória sem fim de Ireno Funes, em “Funes, o Memorioso”, o meu computador não possui HD suficiente para armazenar todas as coisas ditas e escritas por Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, que hoje, faz parte junto com Gardel e Alfonsina do Café Tortoni, dessa forma recomendo a leitura. Não ter memória, esquecer facilmente das coisas passadas, incomoda a muitos leitores, mas pensemos:

Problema mesmo seria nunca esquecer nada, como no caso de Ireno, não esquecer nada das coisas que se passaram em nossa vida”. - Já imaginou?

Dirceo Stona

Porto Alegre - Brasil