sexta-feira, 12 de março de 2021

ENCONTRO COM BORGES

Dia vinte e quatro de agosto de 2020, na Avenida Princesa Isabel, chovia muito. Era noite de futebol. Times, com torcidas fanáticas, disputavam o primeiro jogo decisivo do Campeonato Regional do Rio Grande do Sul, paralisado há mais de oito meses, devido à pandemia que abateu o mundo e a vida de aproximadamente 800.000 seres humanos


As ruas da cidade estavam vazias, mas não era em razão da chuva fria. As ações governamentais agiam como se estivesse dado o toque de recolher devido à preocupação com o alastramento de um vírus que iniciou em Wuhan, cidade chinesa com 11 milhões de habitantes, chamado de COVID-19. Pessoas, enfurnadas nos lares, seguiam as recomendações difundidas para manter o distanciamento controlado. Só faltavam as teletelas (1984, de George Orwell). Tudo isso remetia às distopias literárias, no entanto, tratava-se de uma realidade vigiada e repleta de restrições.  

Estou cansado. Na minha cabeça, um desfile de escritores. Eles disputam o lugar pelo direito da inspiração na escrita que farei e que terá exegese. Penso. Interpretação de que obra, se ainda o ou os protagonistas não chegaram? Esqueço-me de tudo. O relógio da parede marca 23h. O jogo já terminou. Não sei quem ganhou. Não vai ser esse o assunto da crônica ou do conto. Pouco importa se ele será uma narrativa curta, para ser classificado como conto, ou se usarei fatos do dia a dia para elaborar uma crônica. O futebol que acabou? Não. Resolvido. Vais ser uma narrativa. 

Ao entrar no quarto todo desarrumado, a lâmpada do abajur não acendeu. Pretexto para não continuar as leituras. Sobre a mesa de cabeceira, livros sortidos. Livros que li e outros que estava lendo. Machado de Assis sorria para mim com a Missa do Galo, O Espelho, O Caso da Vara. Contos clássicos. Fiódor Dostoiévski me convidava a mergulhar em Noites Brancas. Não estava nem aí para as burocracias que Liev Tolstói, em A Morte de Ivan Ilitch, queria me apresentar. Para completar, outras folhas soltas de Jorge Luis Borges que, naquele dia, estaria, se vivo, completando 121 anos. 

O sono toma conta de mim. Os olhos não se aguentam abertos. Logo me vejo no meio de uma rua que conheço, onde tem uma casa amarela que já foi vermelha algum dia. Na porta dessas casas, caixas de livros, com páginas amareladas, amarrotadas e corroídas pelo tempo completavam o cenário que não me deixava de ser familiar. Continuei a flutuar nos sonhos. Aquelas casas seriam livrarias ou os famosos cafés de Buenos Aires? Sim, estou na Avenida 25 de Mayo. Entrei. Reconheço as paredes forradas com madeira até o teto e os quadros antigos. Café Tortoni, um dos mais tradicionais da capital argentina. A luz ainda era amarelada, mantendo a memória da boêmia que tem viva em seus bares e confeitarias. Comecei a escutar um tango, era o A Media Luz (Corrientes tres cuatro ocho, um telefón que contesta, vejos tangos de mi flor, Y un gato de porcelana..). No lado direito do salão, ao fundo, Jorge Luis Borges, Carlos Gardel e Alfonsina Storni tomavam um vinho e comentavam a vida portenha. Na minha pasta, vários dos contos de Borges: O Aleph, A biblioteca de Babel, O outro, Funes el memorioso, A memória de Shakespeare. Obras que englobam as características regionalistas, que marcaram um tempo em que o tango pertencia às classes baixas e fazia eco às facadas em Palermo. Outra vertente, que mantinha a categoria crítica, o escritor analisava escritores inventados de livros que falavam de outros livros. No fim, Borges passou pela esfera Universal, abordando assuntos filosóficos em torno de Deus e as Suas criações. 

Um escritor sabe quando escreve um texto de qualidade: tem noção se é bom ou se é ruim. Fui mostrar para Borges os ensaios que tinha rascunhado, quando me veio à cabeça uma passagem do Aleph, em que Carlos Argentino queria a aprovação de Borges nos poemas com fraseados bilíngues, sem rima e com três alusões eruditas à Odisseia, de Ulisses. Certifiquei-me de que não me confundiria com o oponente. Não queria receber a mesma hostilidade destinada a Carlos, já que Borges testemunhou as cartas obscenas dirigidas a ele por Beatriz, mulher que o encantou, mas que, nessa rivalidade, ficou em desvantagem. Aproximei-me e, em sussurro, segredei que queria, eu, um sonhador, que Borges fizesse uma apreciação crítica de meus escritos. Com a voz calma e rouca, ele respondeu: — Eu posso. Os textos são seus?

Os olhos procuraram palavras. Cada frase era perfeita, mas as sentenças, as ideias não tinham brilho, coisas que um escritor tem que usar para inebriar o leitor. Cada comentário de Borges fazia com que me apequenasse, Paulo, Nádia, Susana e todos os meus colegas da Oficina de produção psicanalítica e literária estavam no Café Torloni, e ouviram o fechamento da análise:

— “Preciso anotar seu nome”, pediu uma folha para a Alfonsina e completou: “Esse é o livro mais estranho que já vi. Três capítulos impressos! E o resto todo em branco”.

Acordei sobressaltado, o coração palpitava, a cama estava molhada de suor. Despertei a minha mulher, que sempre leu meus textos, fazendo as correções que fossem necessárias e disse: — “Ainda bem que foi um sonho. Alcança-me um copo d`agua”.
Publicado na Coletânea IMORTAIS IV,
da Editora
Alternativa em fevereiro de 2021

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