quarta-feira, 3 de novembro de 2021

 

O Direito de Sonhar



        A Festa da noite. Festa que amanhece na fria madrugada de uma linda segunda-feira, na cidade que não sabe onde fica, dos amigos que foram puras imagens soltas no mundo que fez parte de um passado sem presente. Tudo é surpresa, até mesmo uma mulher que esqueceu, na vertigem de amores mal resolvidos, o calor da cama sem o abraço e sem quem esteve o tempo todo deitado ao seu lado, sem lhe dar carinho, com a pegada firme do macho que faz a fêmea tremer. Essa festa acabou.


        De repente, ela, que usou uma minissaia na balada toda, perguntava-se por se perguntar, fazendo de conta para si mesma que não sabia, onde esteve naquela madrugada fria e quem seria ela? Em que espaço imaginário seus sonhos a levaram aviver, segundo seu cheiro de menina/mulher misturado ao de narcóticos e fantasmas?


        Jogou fora a bolsa Louis Vuitton, presente de uma ex-namorada socialite. O acessório lhe perturbou o tempo todo e já não havia mais nada o que guardar nela. Tudo que tinha, perdeu entre amigos e amigas que a fizeram sonhar, em cada ponto da encruzilhada que não soube qual dos caminhos seguir. A participação frenética da DJ toda estilosa, com um decotão generoso, fone de ouvido cheio de brilho, bem ao estilo Rihanna de ser, terminou. Todos na pista pediam bis. Aprenderam as coreografias da dança. Queriam mais. A plateia mostrava, em pares, como mexer o corpo. Desciam até o chão e subiam devagarinho, era o que a DJ gritava: “Girem uma vez, depois mais uma...”. Era isso que a moça da madrugada lembrava. Esse universo que a rodeou e se revelou permeável a todos os tipos de meditações, criaram ideias fantasiosas, devaneios regulares em uníssono com a solidão. Ela é um mundo imenso no cenário de todo o passado.


        Sempre uma cama diferente. Como se fosse uma prostituta, vagabundos, bandidos, homens que deram o seu amor sem nada esperar, receberam em troca apenas o sexo prometido. Ela, com os cabelos vermelhos e lindos cílios, abrilhantados com lantejoulas, sumiu sem ter dito para onde iria. Perdeu um sapato. Sapato que fazia calo em seu delicado pé. Por que manter um sapato que faz calo? Atirou a bolsa na rua para ver se outra puta a encontraria e a usaria. Na avenida, estudantes, trabalhadores, carolas e demais curiosos queriam saber de quem seriam aqueles apetrechos de festa perdidos na calçada. Seria de uma virgem ou donzela? Claro que não. Um sapato e uma bolsa? Não, não podia ser de um travesti... O tamanho do pé não era o de uma Drag queen.


        A menina que ama a lua, que nunca ninguém ficou sabendo quem era, sumiu.


        Outra casa. Outro lar ou outra casa? Não sei, mas nessas caminhadas há uma contradição. Assim como se encontram sapato e bolsa jogados fora, também se encontram flores. Um baú. Um gato sobre almofadas. Antinomias que formam o rico palco de sonhos, onde nem mesmo as flores permanecem como apareceram no primeiro momento. Ora são orquídeas. Ora simples rosas amarelas. Vidas são vidas. Amores, sei lá. Quem teria deixado a orquídea, a rosa? Também as flores, metamorfoseadas em mulheres, merecem carinho. Querem regar-se com amor, germinar sob o calor da mão que aperta as nádegas nuas sobre a cama. Rosas, orquídeas, flor de Liz, de manacá da serra. Toda flor, como todo corpo, pede a tepidez de outro corpo. Eis o direito de sonhar, como diria Gaston Bachelard. Todos carregam fantasias que, no inconsciente, transformam-se em alegorias oníricas.

sexta-feira, 12 de março de 2021

ENCONTRO COM BORGES

Dia vinte e quatro de agosto de 2020, na Avenida Princesa Isabel, chovia muito. Era noite de futebol. Times, com torcidas fanáticas, disputavam o primeiro jogo decisivo do Campeonato Regional do Rio Grande do Sul, paralisado há mais de oito meses, devido à pandemia que abateu o mundo e a vida de aproximadamente 800.000 seres humanos


As ruas da cidade estavam vazias, mas não era em razão da chuva fria. As ações governamentais agiam como se estivesse dado o toque de recolher devido à preocupação com o alastramento de um vírus que iniciou em Wuhan, cidade chinesa com 11 milhões de habitantes, chamado de COVID-19. Pessoas, enfurnadas nos lares, seguiam as recomendações difundidas para manter o distanciamento controlado. Só faltavam as teletelas (1984, de George Orwell). Tudo isso remetia às distopias literárias, no entanto, tratava-se de uma realidade vigiada e repleta de restrições.  

Estou cansado. Na minha cabeça, um desfile de escritores. Eles disputam o lugar pelo direito da inspiração na escrita que farei e que terá exegese. Penso. Interpretação de que obra, se ainda o ou os protagonistas não chegaram? Esqueço-me de tudo. O relógio da parede marca 23h. O jogo já terminou. Não sei quem ganhou. Não vai ser esse o assunto da crônica ou do conto. Pouco importa se ele será uma narrativa curta, para ser classificado como conto, ou se usarei fatos do dia a dia para elaborar uma crônica. O futebol que acabou? Não. Resolvido. Vais ser uma narrativa. 

Ao entrar no quarto todo desarrumado, a lâmpada do abajur não acendeu. Pretexto para não continuar as leituras. Sobre a mesa de cabeceira, livros sortidos. Livros que li e outros que estava lendo. Machado de Assis sorria para mim com a Missa do Galo, O Espelho, O Caso da Vara. Contos clássicos. Fiódor Dostoiévski me convidava a mergulhar em Noites Brancas. Não estava nem aí para as burocracias que Liev Tolstói, em A Morte de Ivan Ilitch, queria me apresentar. Para completar, outras folhas soltas de Jorge Luis Borges que, naquele dia, estaria, se vivo, completando 121 anos. 

O sono toma conta de mim. Os olhos não se aguentam abertos. Logo me vejo no meio de uma rua que conheço, onde tem uma casa amarela que já foi vermelha algum dia. Na porta dessas casas, caixas de livros, com páginas amareladas, amarrotadas e corroídas pelo tempo completavam o cenário que não me deixava de ser familiar. Continuei a flutuar nos sonhos. Aquelas casas seriam livrarias ou os famosos cafés de Buenos Aires? Sim, estou na Avenida 25 de Mayo. Entrei. Reconheço as paredes forradas com madeira até o teto e os quadros antigos. Café Tortoni, um dos mais tradicionais da capital argentina. A luz ainda era amarelada, mantendo a memória da boêmia que tem viva em seus bares e confeitarias. Comecei a escutar um tango, era o A Media Luz (Corrientes tres cuatro ocho, um telefón que contesta, vejos tangos de mi flor, Y un gato de porcelana..). No lado direito do salão, ao fundo, Jorge Luis Borges, Carlos Gardel e Alfonsina Storni tomavam um vinho e comentavam a vida portenha. Na minha pasta, vários dos contos de Borges: O Aleph, A biblioteca de Babel, O outro, Funes el memorioso, A memória de Shakespeare. Obras que englobam as características regionalistas, que marcaram um tempo em que o tango pertencia às classes baixas e fazia eco às facadas em Palermo. Outra vertente, que mantinha a categoria crítica, o escritor analisava escritores inventados de livros que falavam de outros livros. No fim, Borges passou pela esfera Universal, abordando assuntos filosóficos em torno de Deus e as Suas criações. 

Um escritor sabe quando escreve um texto de qualidade: tem noção se é bom ou se é ruim. Fui mostrar para Borges os ensaios que tinha rascunhado, quando me veio à cabeça uma passagem do Aleph, em que Carlos Argentino queria a aprovação de Borges nos poemas com fraseados bilíngues, sem rima e com três alusões eruditas à Odisseia, de Ulisses. Certifiquei-me de que não me confundiria com o oponente. Não queria receber a mesma hostilidade destinada a Carlos, já que Borges testemunhou as cartas obscenas dirigidas a ele por Beatriz, mulher que o encantou, mas que, nessa rivalidade, ficou em desvantagem. Aproximei-me e, em sussurro, segredei que queria, eu, um sonhador, que Borges fizesse uma apreciação crítica de meus escritos. Com a voz calma e rouca, ele respondeu: — Eu posso. Os textos são seus?

Os olhos procuraram palavras. Cada frase era perfeita, mas as sentenças, as ideias não tinham brilho, coisas que um escritor tem que usar para inebriar o leitor. Cada comentário de Borges fazia com que me apequenasse, Paulo, Nádia, Susana e todos os meus colegas da Oficina de produção psicanalítica e literária estavam no Café Torloni, e ouviram o fechamento da análise:

— “Preciso anotar seu nome”, pediu uma folha para a Alfonsina e completou: “Esse é o livro mais estranho que já vi. Três capítulos impressos! E o resto todo em branco”.

Acordei sobressaltado, o coração palpitava, a cama estava molhada de suor. Despertei a minha mulher, que sempre leu meus textos, fazendo as correções que fossem necessárias e disse: — “Ainda bem que foi um sonho. Alcança-me um copo d`agua”.
Publicado na Coletânea IMORTAIS IV,
da Editora
Alternativa em fevereiro de 2021

https://www.editoralternativa.com/product-page/colet%C3%A2nea-imortais-iv


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Dois Mundos


Existem seguidores de Maomé, de Buda, de Jiangshi. Também há os adoradores de Orixás, de Jó e até de Qohélet. O maior número está no grupo dos devotos de Deus, que chamarei de Senhor. É Ele o dirigente de Yggdrasil, um sistema cujos frutos têm o poder de curar qualquer doença e até mesmo de salvar quem está à beira da morte.

    O Senhor já havia, em outra circunstância, castigado Adão e Eva. Foram expulsos do Éden, visto que Eva, seduzida pela serpente, provou da árvore proibida o fruto. Nasceu aí o desapontamento do Senhor e, também, o pecado e a desobediência. Ele malogrou na tentativa de se fazer temido. Usou, como retaliação, a água para forçá-los a serem fiéis às doutrinas e aos Seus dogmas. Pediu para Moisés divulgar quais seriam as leis, escritas nas tábuas velhas que tinha, porque, na época, não havia Internet e nem televisão. Chamou Aarão e ordenou:


    Aarão, não conte à Mirian e nem ao seu irmão, pois ele já falhou comigo quando Eu pedi que libertasse o povo de Israel. Até hoje brigam por Moisés não ter conduzido as negociações como deveria e, além do mais, a tua irmã vai contar para as amigas. Preste atenção: dentro de quarenta dias vai começar a chover e um grande dilúvio varrerá da terra os males. Para isso, tens que falar com o Noé, um carpinteiro, filho do Lameque, para que construa uma Arca e nela leve um casal de cada espécie.


    Aarão, assustado como sempre, conhecedor da maneira rude do seu Senhor, foi e contratou uma equipe de engenheiros, que passavam de reunião em reunião trocando mensagens entre si, até que, em certo momento, para que o projeto encomendado fosse mais perfeito, resolveram conferir os currículos dos que estavam trabalhando. Ao analisarem o perfil de Noé, verificaram que ele não tinha curso superior e, de posse disso, ordenaram ao Chefe do RH que o demitisse. Assim foi feito.


    Passaram-se quarenta dias e a Arca não ficou pronta. Mesmo que insistissem com o Senhor para alterar a data final do detalhamento e execução do trabalho, não houve novo prazo. De repente, avistaram ao longe um barco em proporções colossais. 


    Aarão, perplexo, perguntou:

- O que é aquele vulto que passa lá?

Responderam em uníssono:

- É o Noé que construiu aquela Arca, parecida com a do nosso projeto.

    

    Depois de ter castigado Adão e Eva e de não ter obtido, com as missões dadas a Moisés e a Aarão, os resultados esperados, o Senhor arremeteu-se novamente contra a humanidade. Transformou em sangue as águas do Rio Nilo. Cobriu a Terra com rãs. Infestou homens e animais com piolhos. Escureceu as nuvens com gafanhotos, que, na visão autoritária Dele, nada adiantou. As coisas foram cada vez piorando: homens desrespeitosos passaram a profanar estátuas e a praticar adultérios à revelia. Governantes, desorientados, começaram a pregar o uso de drogas sem a aprovação da OMS (Organização Moderadora do Senhor).


***

    Em Banquete promovido por um certo filósofo grego, homens beberam até cair, discorrendo sobre o amor. O mesmo filósofo descobriu uns sujeitos em uma caverna e os manteve de costas para que não vissem a luz e não soubessem dos prazeres da vida: a mulher pelada, o jogo do bicho e o carnaval. Como não tinham o que comer, se alimentavam de morcegos.


    A fala em Praça Pública, como deve ser a República, foi o pináculo de sua existência. Atraiu para si vários seguidores. Um deles, o mais fiel, depois de dizer que: “só sabia que nada sabia ”, morreu em defesa da vida virtuosa e da moral – suas grandes preocupações.


    Um velho de barbas longas e amareladas, que morava nas montanhas em uma caverna e, também, se nutria de morcegos, desceu e proferiu: “se queres o caminho para ti mesmo? Detém-te um pouco mais e me escuta ”. Assim falou Zaratustra.


***

    Com todas as desobediências e os sacrilégios perante o Senhor, Ele resolveu confabular agora com uma divindade de nome Jiangshi, que teve origem em corpos que ressuscitaram de pessoas cuja alma não conseguia deixar a matéria. Jiangshi, para se manter, sugava a essência vital (o ki ) dos outros, e sugeriu ao Senhor – para resolver o mal, outra vez gestado pela humanidade – criar uma pandemia. Segundo Jiangshi, será uma doença contagiosa que se alastrará em todas as regiões e não poupará ninguém. Com isso, o Senhor buscará libertar aqueles homens que estavam na caverna, cegos e surdos para o mundo, por viverem de costas para uma verdade luzente. Eles, libertos, junto com o velho das montanhas, sairão propagando a paz e o amor livre, mostrando que não é necessário crer Nele e tampouco seguir as leis. Os eloquentes discursos e seus exasperados perdigotos serão os vetores que contaminarão uns aos outros. Líderes de outras tribos, praticantes do totemismo,

brigarão entre si e a animosidade imperará. Depois que poucos ficarem na Terra por terem perdido seus amigos, familiares e colegas, dar-se-ão conta de que outros, de alma purificada, habitarão o mundo, que Adão e Eva não souberam respeitar, ao instituírem o pecado.


    Assim sendo, uma grande Assembleia dos Deuses foi convocada para transmitir o que ficou acertado entre o Senhor e Jiangshi. Muitas informações vazaram a partir daí e geraram inúmeras fake news . O medo e a paranoia se instauraram. Diante dos rumores e do clima tenso, o Senhor, ao ser cobrado, precisou se retratar. Arrematou: conforme Jiangshi, todos os não tementes a Ele sucumbirão, não importa o deus que sigam, não importa a cor nem a idade, basta serem humanos.

Aos peixes, às aves, às plantas e aos animais, nada acontecerá: eles vivem de acordo com as Leis da Natureza e não cometem adultérios.


***

    Passaram-se dois mil anos. Morreram milhares de pessoas. Quando todos pensavam ser tudo aquilo uma pilhéria, uma nova sociedade surgiu, com outros costumes: no Yggdrasil todos se reportam agora a uma só divindade. Os rostos estão iguais ao usarem sobre a boca e o nariz um adorno que vai da cor branca à preta, para que as secreções não se espalhem. Corpos conseguiram se libertar da alma e neles a seiva da vida prospera, sem que ninguém mais precise ficar de costas

para a luz. As crianças aprenderam a se comunicar através da imagem produzida em vídeos. Os limites geográficos terminaram. Não existem mais fronteiras para que não se repitam mais as cenas de Aylans, Oscars e Valérias . Por um mundo sem fronteiras, caso contrário, outras tragédias virão.


    A pandemia, provocada pelo Jiangshi, no mundo chamado Yggdrasil, deixou o Senhor satisfeito pela seleção e pelos cortes feitos, que otimizaram a imagem e a imaginação. Com isso, pensa Ele, novos estilos de vida, novas rotinas, com a implementação do distanciamento controlado, também evitarão os conchavos e os complôs contra Seus inimigos. Ninguém mais se achará acima das leis.

Predominará o compromisso com o bem comum.


Texto publicado na forma se sátira na 

Coletânea Palavras 2020, 

Associação de Jornalistas e Escritores do Brasil, 

coordenado por Eliane Tonello