sábado, 16 de maio de 2020

A morte do cachorro no contexto da vida

A morte do cachorro no contexto da vida

O cão como pessoa


 Meu propósito não é repetir uma história já contada. Dos dias e noites que a compõem, só́ me interessa uma noite; do resto não contarei, senão o indispensável para que essa noite seja entendida 

  
D’Jango morreu. Morreu uma pessoa em mim.

            Para muitos pensadores, pessoa é um ser vivo que  sente dor e tem sentimentos. Para Kant, pessoa é, não ‘só um  sujeito de direitos, mas também quem possui valor absoluto e  existe como fim. Já para John Locke pessoa é, um ser  inteligente e pensante dotado de razão e de reflexão.

D'Jango era tudo isso.
 
            Antes de prosseguir, alguns dos fatos que poderiam ser finais neste post, devo registrar agora. Devo registrar também, que acredito na evolução da espécie e no aperfeiçoamento das raças pela seleção genética, principalmente dos animais domésticos. Acredito que a linguagem, hoje, faz parte na diferenciação entre os humanos e os outros seres existentes no mundo, para não sairmos deste universo, onde existe algo em comum com a linguagem. Foi a falta da linguagem que fez o D’Jango sofrer, ele ainda não tinha aprendido a usar a palavra para se comunicar e dizer onde que estava doendo.

            Tenho dito, e não vou errar não, que os cachorros daqui a 300 anos vão falar. Foi a falta da linguagem falada, do jogo fisionômico do tom de voz que levou D’Jango a se comunicar com atos e ações, para dizer que estava mal. Ele estava muito mal.

            Em um sábado, dia 02 de maio, perto da meia noite, em plena vigência do Isolamento Social estabelecido pelo Governo do Estado do RGS, pelo risco de contaminação com o novo coronavírus Covid-19, que o D’Jango - nosso personagem - ao ver nossa movimentação no Cantegril/Viamão, interpretou como se fossemos sair e irmos para Porto Alegre, como sempre fazíamos nessa hora, e por entender que isso ocorreria, deitou-se no chão frio da garagem, onde todos o enxergavam, fazendo-se de morto, como quem dissesse: 

- “Por favor não me deixem aqui, eu estou mal


            Talvez seja oportuno dizer que em 30 de setembro de 2018, no post “Sobre a questão da morte”, eu disse que conseguia lidar bem com ela, que conseguia lidar com a morte sem problema, que a tenho simplesmente como um fenômeno natural, pois, dizia eu, que a considero como um evento onde todos os seres vivos participarão. Verdade, mas tenho que hoje fazer uma correção. A morte do D’Jango me fez repensar este conceito. A morte do D’Jango me afetou e eu parei para pensar o porquê de ela ter me afetado ao ocorrer neste ser que nos sábados e domingos esperava meu churrasco, que vinha na minha janela abanar o rabo como que dizendo Bom Dia e que  estava sempre feliz. Descobri. 

         A morte daquele cachorro preto com manchas cor de mel e grande  companheiro, que corria pelo pátio e brincava alegremente com a Melina, uma linda cadela viuva de dois cães  me afetou. Me afetou porque ele não tinha evoluído o suficiente e, mesmo sabendo se comunicar, não tinha aprendido a usar a linguagem das palavras no modelo lógico de dizer coisas, mesmo que elas não tivessem sentido. Falando nisso, Wittgenstein afirmou que:
 “representar na linguagem algo que contradiga as leis lógicas é tão pouco possível quanto representar uma figura que contradiga as leis do espaço”.  

         Porém, esta delimitação aparente e sufocante, estabelecida pelos limites da linguagem entre ele e eu, foi o que me fez sofrer, por não entender a intensidade da dor que ele vinha sentindo e com isso, procurar na ciência uma forma de ajudá-lo.

         O ser humano que navega no mesmo plano, que usa a mesma linguagem falada, inclusive se valendo do uso, do jogo das mímicas e do tom da voz, sabe como sinalizar onde está doendo algo em seu corpo, sabe demonstrar com clareza seu sofrimento, o animal não. O animal não sabe.

         O animal não sabe, ainda, usar um tipo de comunicação ou o humano não sabe ler na comunicação animal o sofrimento pela dor, e é esta dificuldade de não entender o sinal que eles emitem que produz o sentimento de culpa em nós seres humanos. O sentimento de culpa, surge em nós por não entendermos os sinais dados pelo animal, que aliás é o mesmo sinal dado um potencial ser humano suicida, que sempre dá antes de provocar sua própria morte e lamentavelmente não sabemos interpretar.

           O final da nossa história só poderia terminar com esta narrativa em metáforas, por ela se passar em tempos diferentes, onde a conversa tampouco existiu, nem com um nem com outro. Não quero que me tome por herege, nem me odeie por sustentar a ideia contrária dos que conversam com Deus e nem por pensar diferente dos que seguem os ensinamentos das religiões e suas divindades. São minhas reflexões.

            O D’Jango morreu como morreu o “Gumma”, o “Bolinha”, o “Nicollau”, o Buss e a “Athina”. O D’Jango morreu em 9 de maio de 2020 às 20h40 minutos.